quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Delírio

Em sua anástase, ressurgiu com alma nova. Mais puro, mais indulgente, mais humano. Antropomórfico, viu-se representado como um deus de oito braços abarcando um globo terrestre bífido que ele tentava manter unido. A seus pés, uma cártula indicava o seu destino. Sua dromofobia faria o resto. Temia ser considerado capto de mente e, antes que isso se confirmasse, mandar-se-ia para outros mundos. Novas terras, nova gente, novos ares. Novos sons, novos sabores, novos amores.

João Cândido Albino das Neves nunca se perdoou por ter nascido em Cabaceiras, aquele município perdido no semiárido paraibano. Não porque a cor da sua pele contrastasse com o tom chocolate do resto da população, conseqüência provável da erraticidade de algum holandês por aquelas bandas, mas porque não se conformava com o fato de que Cabaceiras, além da ridícula taxa de produtividade alcançada no cultivo da macaxeira, ostentava o recorde de menor índice pluviométrico do país. O que, segundo ele, não era verdade. Aquele estigma o indignava, e atribuía o fato ao erro cometido por um funcionário do IBGE, o qual, não acreditando no que via, inverteu os dígitos apresentados pelo pluviômetro no mesmo ano de sua instalação. A partir daí, conta a lenda, a engenhoca foi escalpelada pelos funcionários locais e o IBGE, - oh! têmpora, oh! mores, - passou a repetir o mesmo resultado ad perpetuam.

Cândido deixou sua terra natal em busca de um caldo cultural mais denso.
No Recife, passou noites sentado na balaustrada da Ponte Buarque de Macedo dissecando ossos imaginários de Augusto dos Anjos – Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
A biblioteca da Universidade Federal de Pernambuco foi o seu cadinho de relíquias bibliográficas. Escritores coevos não lhe interessavam. Só demiurgos, e demiurgos não se fazem mais em nossos dias. No colofão de um tratado de semiologia encontrou o caminho para outras obras que o cativariam no estudo dessa ciência. Dedicou-se com afinco e tornou-se professor na matéria, notabilizando-se por afabular os eventos dos quais participava e encantar seus alunos com hipotiposes.
Sua heterotopia deu-lhe fama. Fama e tédio. Não suportando mais a monotonia em que se metera, ouvindo bolodórios daqueles piriricas o tempo todo, excogitou sair-se da enrascadela e demandar por novos ares. Deixaria os alunos com seu assistente, aquele samango lutulento e mendaz que não fazia outra coisa senão preparar pernadas para tomar-lhe o lugar. Pois agora o teria.

João Cândido sairia dali. Tornar-se-ia um paguro e usufruiria de todos os benefícios que a nova vida lhe proporcionaria. Esta parataxia o libertaria dos grilhões que ele mesmo se impusera. A palingenesia faria o resto. Aleluia! Aleluia!
Vestiu seu melhor terno e escolheu a melhor gravata. Dirigiu-se ao aeroporto. Comprou a passagem no primeiro avião e saiu em busca do amor. O amor!
O amor? A fatalidade do seu palíndromo levou-o a Roma.
E foi pedir a bênção ao Santo Padre.


segunda-feira, 18 de outubro de 2010

A Primavera de Suzaninha



Claudia Bontempo

Morávamos numa cidade muito pequena, cheia de passarinhos em que a vida passava devagar. Meu pai era funcionário da única fábrica do lugar e minha melhor amiga, Suzaninha, era a filha do gerente geral. Nossas mães eram amigas desde pequenas, mas tinham situação financeira diferente. D. Aparecida podia andar de vestido, sapato e batom comprados na capital. Nos finais de semana a família assava carne na churrasqueira que tinha em casa.

Quando chegou a primavera Suzaninha veio me falar toda prosa que ia se mudar. O pai tinha sido transferido para a sucursal e morariam em apartamento com direito a automóvel. Fui correndo atrás dela festejar a notícia com a família que estava toda reunida nos sofás da varanda. Os filhos todos em volta do pai orgulhoso pela promoção que mereceu. Um vai e vem de vizinhos para parabenizá-lo, a maioria funcionários da fábrica aproveitando uma boquinha nos quitutes. Os homens improvisando discursos, algumas mulheres chorosas já imaginando saudades, crianças no quintal se engalfinhando nas brincadeiras. À noite quando voltei para casa custei a dormir pensando na vida boa que esperava Suzaninha e como eu também queria para mim.

No dia seguinte, bem cedinho, fui chamá-la para a escola e entrei pelo portão aberto do quintal. Ouvi um choro baixinho perto da churrasqueira e espiei de longe. Dona Aparecida metida num vestido florido, tinha os cabelos louros desalinhados e as bochechas rosadas. Estava encostada no muro enquanto um rapaz, abraçado a ela sussurrava na sua orelha e limpava suas lágrimas com as costas das mãos. Ao lado dos dois um cesto cheio de mudas de violetas emborcado no chão. Fiquei com medo que me reparassem e corri. Mas voltei e chamei por Suzaninha.

O rapaz pegou o cesto, disfarçou e começou a plantar as mudas no jardim. D. Aparecida fingiu varrer o quintal. Minha amiga veio com cara de sono ao meu encontro. No caminho, ela agitada falava das novidades que viriam com a mudança, enquanto eu ia quieta. Na esquina da escola, estranhando a minha mudeza, perguntou se eu estava chateada com a sua partida. Estava também, mas naquele momento era a angústia da descoberta da tristeza de D. Aparecida que me deixava muda. Cena mais ruim de se ver. Menti para Suzaninha e disse que era só chateação pela sua partida mesmo.

Aquela foi a última primavera que passei com Suzaninha. Depois vieram outros donos para a sua casa que cimentaram o jardim de Dona Aparecida e fizeram piscina. O plantador de violetas eu nunca mais vi. Mas os passarinhos ainda ficaram algum tempo por lá.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

A Vida por dois Vinténs

A operação de resgate dos trabalhadores que ficaram soterrados numa mina do Chile está chegando ao fim, felizmente com êxito. Foi comovente. Trinta e três vidas estavam a 700 metros de profundidade, e o cenário montado para recebê-las na superfície da terra foi, merecidamente, proporcional. A imprensa do mundo inteiro está lá. O presidente do Chile acompanhou, dia após dia, a operação de salvamento e está lá para receber os mineiros e parabenizar a todos: salvadores e salvados. O presidente da Bolívia também compareceu para receber o único representante do seu país naquele infausto evento. A engenhoca montada para a operação, que levou apenas (!) 68 dias para alcançar o seu objetivo, funcionou a contento, embora a roldana que guia o cabo de tração da cápsula possa causar arrepios em qualquer estudante de engenharia mecânica. Cantou-se o hino nacional à exaustão. Estão salvos! Glória a todos!

Agora eu pergunto: O que é que leva o ser humano a confinar o seu semelhante
a 700 metros de profundidade para extrair de lá alguns trocados ?

                                                                                                                 Luigi Spreafico

sábado, 9 de outubro de 2010

O Colaminho

Acordou cedo. Tinha coisas importantes a fazer. Deu uma volta pela cozinha, tomou café vagarosamente, pensativo, analisando os obstáculos que encontraria pela frente durante o dia que se desenhava complicado.
Procurou o colaminho. Não o achou no lugar onde o havia deixado. Voltou-se para a mulher:

-- Você viu o meu colaminho?
-- Não.
-- Como, não? Ele não está onde o deixei.
-- Você nunca sabe onde deixa as coisas.
-- Claro que sei. Você é que mexe nas minhas coisas e depois não coloca no lugar.
-- Eu não mexi em nada do que é seu. Você se esquece, e depois vem cobrar de mim.
-- Eu me lembro perfeitamente das coisas. E não aceito essas suas insinuações.
-- Que insinuações? Eu não falei nada. Você está ficando maluco. Onde já se viu       amarrar uma caneta no pé da mesa?
-- Você sabe perfeitamente por que eu amarrei a caneta. Não pára caneta em lugar nenhum desta casa. Uma vez encontrei oito canetas na tua bolsa.
-- Você anda remexendo na minha bolsa?
-- Eu só fui procurar uma caneta. Encontrei oito!
-- Não grite assim comigo! Você só sabe reclamar. Não sabe onde larga as coisas e põe a culpa em mim!
-- Agora quem está gritando é você! Assim não é possível. Eu não agüento mais. Alguma coisa tem que ser feita. Onde está o meu colaminho!? Você está arruinando a minha vida! Se você ao menos tivesse a sensibilidade de parar de ciscar nessa cozinha e me ajudasse a procurá-lo. Onde está o meu colaminho? Eu me mato pra fazer as coisas direito, ainda se fosse em meu benefício pessoal mas não, não, é tudo pra você, pra família, tudo, tudo, eu já não durmo mais direito, não consigo me concentrar, as coisas desaparecem, não se acha nada, nada, eu me esforço, não penso noutra coisa, você vai acabar com a minha vida!
-- Por causa de um colaminho? Francamente!

                                                                                                     Luigi