sexta-feira, 30 de abril de 2010

O Filho da Professora



Claudia Bontempo


Ela era professora de uma escola pública de um subúrbio do Rio de Janeiro. Devia ter uns vinte e cinco anos, mas vestia-se com roupas circunspectas , talvez para dar menos leveza ao ofício de ensinar. Era severa e pouco sorria. No entanto, como eu conseguia ver a juventude encarcerada nas saias pregueadas abaixo do joelho, nas blusas de balon beges e por detrás de óculos de armações pesadas que usava, me afeiçoei a ela desde o primeiro dia de aula.

Munida com minha pseudo sabedoria sobre sedução de adultos, não media esforços para que gostasse de mim. Sentava-me na primeira carteira, ao lado de sua mesa; com todas as tarefas de casa cumpridas, apressava-me a responder primeiro as perguntas que fazia à turma, estava sempre pronta para apagar o quadro negro, a fazer ponta nos seus lápis, a carregar a pesada pasta que levava todos os dias. Mas algo em mim desagradava a professora, e por mais que me esforçasse, não conseguia que me olhasse com a bondade e o afeto de que eu precisava.

Aos poucos, apesar de todo meu empenho, percebi que ela definitivamente não simpatizava comigo. Quando era complacente, preferia ser com as meninas, cujas mães iam para a escola bajulá-la, carregando pratinhos de bolinhos e empadinhas, ou raminhos de flores do jardim que mantinham em casa. Sempre impecavelmente vestidas e penteadas, chegavam sorridentes e cheirando a amor materno.

Eu não tinha mãe. Quer dizer, tinha sim. Mas a minha trabalhava fora, e como eu que tinha 7 anos de idade, achava que nenhuma mãe trabalhava fora. Exceto a minha, e as professoras que ,certamente, tinham o aval de Deus para deixarem seus filhos aos cuidados de outros enquanto cumpriam o divino trabalho de ensinar. E eu carregava comigo tanto ressentimento, por chegar desgrenhada e não ter ninguém para ajeitar meu cabelo, por faltar-me um botão de camisa e não ter quem o pregasse, antes que a professora desse por falta, e pela solidão de não ter uma mão para segurar na minha até a porta da escola . Sentia inveja, de independer de mim chamar a sua atenção, enquanto ela distribuía afetos, ainda que comedida, às outras garotas, apenas pelo respaldo materno.

Mas um dia, o filho da professora foi à escola, à fim de ver um ioiô que o pai de uma das alunas trouxera dos Estados Unidos, e que era a grande novidade do momento. Quando o brinquedo rolava no ar, luzes coloridas acendiam e apagavam. Foi um alvoroço danado na sala de aula. Colocaram o menino sobre um banco com o ioiô na mão; ao mesmo tempo, todas as meninas batiam palminhas de falsidade, a adulá-lo, enquanto ele dava gritinhos de alegria. E de repente, a professora tinha largado o ofício para ser mãe, e não se continha e ria de adoração, por aquele instante de felicidade que o seu filho experimentava.

Foi então que resolvi me vingar. Fui a única a ficar sentada no fundo da sala a escrever coisa nenhuma no caderno, para que não se esquecesse do trabalho que a fazia deixar o filho aos cuidados de outro em casa, sozinho. Quis que lhe pesasse a culpa, ao mostrar o quanto o seu filho padecia na mão de alguma professora como ela.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Outono, Ruivas e Chocolate Branco.


Meu caro ou minha cara. Existe para você algum dia ou período do ano em especial? Sabe, aquele que te faz recordar algum fato marcante na sua vida? Ou até, algum que mesmo não fazendo sentido, lhe vem à lembrança? Pois bem, caso sua resposta foi ‘Sim!’, somos dois. Contudo, se o seu é relativo a aniversários, feriados ou algum relacionado ao horóscopo, não somos mais.

O meu período em especial se dá no mês de maio. Esta é a época de minha estação favorita. Embora no hemisfério sul o outono inicie no fim de março – pena as chuvas que dão adeus ao verão não serem mais tão poéticas como aquelas da canção de Tom Jobim – é em maio que ela nos fornece o clima mais agradável de todo o ano. É quando o céu fica mais azul e o sol combina perfeitamente com aquele friozinho. Sinto-me extremamente bem nestas condições.

Você pode estar questionando: Outono? Por que não o verão como todo mundo? Estranho, não? Pois é, vamos dizer que, na maioria das vezes, minhas preferências e comportamento não seguem conforme a grande maioria. Não sou aquele que as pessoas chamam de ‘Normal’. Aquilo que é diferente me atrai.

Por exemplo. Eu gosto mais do chocolate branco; Tá certo que eu adoro futebol, porém não torço pelo Flamengo ou pelo Corinthians; No carnaval, gosto mais do sossego – nunca vi desfile na Sapucaí e não fico saindo afoito nas ruas para brincar no tumulto; Prefiro rádio e leitura à televisão; Sempre lanchei no Bob’s e não no McDonald’s. A primeira coisa que reparo numa mulher não é a bunda, mas sim o sorriso (uma mulher ‘sem bunda’ é muito mais bonita do que sem os dentes, não?); Não sou muito de falar e nem sou chegado em cerveja; Detesto o calor e gosto do frio, pois me faz vestir uma de minhas roupas preferidas – o casaco; Até o meu nome é difícil de ser encontrado em outra pessoa.

Não aprecio este estilo de vida? ... Pelo contrário. Eu adoro o meu jeito. Entendo que em alguns momentos ser diferente pode trazer solidão e exclusão, mas temos que sabe lidar com isto. O importante é que sejamos autênticos e podemos descobrir até que não estamos tão sozinhos assim. Além do mais são nas diferenças que está a graça da vida, concorda? Imagine se todos andassem de roupa azul; se as bandas de rock fossem compostas somente por guitarristas; se na seleção jogassem onze ‘Camisas 10’ ou então se os homens só preferissem as loiras de olhos azuis. O mundo não seria no mínimo chato?

Caso não concorde com tudo o que mencionei e tenha uma opinião adversa às minhas preferências, não posso julgá-lo mal. Seria incoerente de minha parte após todo este discurso. Talvez, ser ‘Normal’ nem seja tão ruim assim.

Eu prefiro as ruivas. A você não? Que bom... Sobra mais para mim.


Emanuel Villanova

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Parabéns Brasília



No centro de um planalto vazio plantaram uma cidade. E, foi chegando gente de tudo quanto é lado. Gente estrangeira, gente brasileira. Trabalhadores.Meus pais vieram antes, recém-casados. Eu cheguei em 1964 e morei na Capital Federal até os oito anos de idade.

Em Brasília aprendi a andar, ler, escrever. E, a brincar. Fazia comida para minhas bonecas que viviam lambuzadas de barro, como eu. Brincava de pique-pega, pique-esconde, amarelinha. Gostava de cutucar tatu-bola no chão gelado da varanda de casa. Aprendi a andar de bicileta, e ganhei como prêmio um bombom do meu melhor amigo.

No Zoo andei de elefante, brinquei com filhote de leão e fiquei impressionada com as galinhas que eram atiradas, dentro do viveiro, para o almoço das cobras.

Fui pela primeira vez ao circo e não fiquei nem um pouco confortável quando o palhaço perguntou: Você faz xixi na cama? meu rosto ardia em vermelho, aflita podia jurar que a pergunta era feita para mim.

Fui ver a chegada dos restos mortais de D. Pedro I e abanei orgulhosa bandeirinha verde e amarela. Vi a Rainha da Inglaterra passar. E, também estava lá no desfile do Time Campeão da Copa de Setenta. Quando da chegada do homem à lua, estava de frente para a televisào, como o resto do mundo.

Aprendi a admirar o belo : Nos fenômenos da natureza onde o céu é de um azul profundo, o pôr do sol lindo e a chuva anda. E, nas construções : A Catedral, o Palácio do Itamarati, O Palácio da Alvorada, A Praça dos Três Poderes, o laguinho defronte ao Congresso Nacional com lindos cisnes. O vitral com 12 diferentes tons de azul da Igreja Dom Bosco.

Em Brasília tudo era brincadeira, fantasia, imaginação, lá eu vivi a minha infância, a melhor parte da vida, e aquela alegria trago comigo até hoje.

Miranda

sexta-feira, 16 de abril de 2010

ALDENOR VAI A RECIFE

Provavelmente, aquele que leu a história da minha viagem ao aeroporto de Fortaleza com o Aldenor, e acreditou nela, achou que eu tive alguma participação naqueles acontecimentos bizarros. Engana-se. Porque, duas semanas depois o Aldenor veio ao Recife para dar continuidade ao nosso trabalho e hospedou-se em um hotelzinho qualquer de periferia, no lugar do Grande Hotel onde sempre ficava. No fim do último dia de trabalho eu o acompanhei até o hotel, onde ficamos tomando uma cerveja, na esperança de encontrar soluções para os problemas do sub-desenvolvimento do Nordeste. Quando saí, a lua apareceu , sorrindo. Sua imagem refletida no Cais do Apolo era entorpecente. Impossível ir para casa. Fiquei perambulando pelas pontes, contemplando as sombras dos edifícios refletidas na maré alta.
A cidade ficou deserta. Decidido a ir para casa tomei o caminho da Ponte da Boa Vista. No sentido oposto, caminhando lentamente, aparece o Aldenor, todo sorrisos.
- Beduino, finalmente te encontrei!
- O que houve, Aldenor, você não disse que ia dormir?
- Perdi a carteira, os documentos, não sei como pagar o hotel, não tenho dinheiro nem para o taxi. Você me arranja algum trocado?
- Claro, mas o que é que você veio fazer aqui? Como ia me achar? Eu já devia estar em casa há muito tempo.
Aldenor baixou os olhos, colocou as mãos sobre meus ombros e falou lentamente:
- Eu sabia que ia te encontrar!

Luigi Spreafico

Uma Cigana na Parede



O deprimido é um ser rejeitado, até por ele mesmo. Ninguém gosta de estar deprimido, ou de estar ao lado de alguém deprimido.Eu sei o que é isto, já estive dos dois lados.


Para o deprimido tudo é difícil: o muro é muito alto, a dor é muito grande, a noite é muito longa.


Depois de seis anos, em morna, depressão, consegui, com muita luta, e com a ajuda do Dr. Freud e de sua fiel assistente (minha analista), sair deste estado da alma, que a muitos parece frescura, mas não é.


Deprimida havia me perdido de mim. Não me reconhecia mais, nem fisicamente. Meus cabelos não eram mais cor de mel, minhas roupas não me cabiam mais e o sorriso no rosto, marca registrada desde a infância, não estava mais lá.


Só uma coisa não mudou: a minha admiração pelo que é belo, pela arte.


Ainda bem tristinha, tomei coragem e fui viajar sozinha.


Hospedada em uma pequena cidade do estado de Nova Jersey (EUA), sempre que podia pegava o trem bem cedinho, parava em Hoboken (NJ), subia uma escadinha e pegava o path que me deixava na 33, bem no coração de Manhattam.


Não é fácil ser feliz, não é fácil ser livre. Passava os dias subindo e descendo aquelas ruas, sem saber muito bem o que fazer com tanto tempo e liberdade.


Perdida, não conseguia nem almoçar. Comprava duas barras de chocolate, uma "Pepsi" e, assim, passava o dia todo. Quando cansava, entrava numa livraria e, no ar condicionado, cercada dos melhores amigos de um deprimido: os livros, descansava.


Depois de umas duas semanas, já conseguia planejar alguma coisa. Fui ao Moma, ao Museu de História Natural, entrei em várias galerias de arte, no Soho. Almocei em Little Italy, um nhoque inesquecível.


Tão longe das minhas coisas, da minha, nada invejável, rotina de dona de casa, aos poucos fui me reencontrando.


O acaso, às vezes, me dava um empurrãozinho. E, foi por acaso, que eu vi uma exposição de quadros do meu pintor predileto: Amedeo Modigliani.


Naquele dia, pretendia ir ao Guggenheim, cheguei até a porta e resolvi não entrar, ia almoçar primeiro e voltaria depois se fosse o caso.


Indecisa, sem saber o que fazer e aonde almoçar,ainda pela Quinta avenida, andei mais dois quarteirões e vi uma fila enorme. Entrei na fila, para dar um tempo enquanto pensava.


Sorte a minha, a fila era para entrar no Jewish Museum, onde havia uma exposição das obras, dele mesmo: Modigliani.


De repente, fui invadida por uma alegria e uma felicidade que não cabem em depressão nenhuma.


Esperei a minha vez, entrei no museu e não tive mais medo de ser feliz.


Dei voltas e voltas naqueles salões repletos de lindos retratos. Os retratos, de Modigliani, são diferentes. Seus retratados ficam lindos com o olhar do artista. Ele é generoso. Os nus, apesar de terem escandalizado na época, são puros e sensuais. Isso já seria o bastante para que ele fosse o meu predileto.


Alguns meses mais tarde, de volta ao Brasil, passando por uma ruazinha, aqui mesmo em Botafogo, bem pertinho de casa, na porta de um brechó, dei de cara com um pôster que retratava uma cigana com uma criança nos braços.


Não via esta imagem desde os sete anos de idade. Um pôster igualzinho enfeitava a parede, da sala de jantar, da casa da minha infância.


Reconheci o traço, cheguei mais perto e li a assinatura: MODIGLIANI.


MIRANDA

sábado, 10 de abril de 2010

ALDENOR, O MESSIAS

O Aldenor morava com cinco mulheres. A esposa, a mãe da esposa, uma irmã da esposa, uma sobrinha e uma enteada. Não tinha filhos. Todas o amavam, e o serviam, e o seguiam como se fosse um novo Messias enviado especialmente para redimir mulheres. Sempre magnânimo, Aldenor distribuía sorrisos, afagos, carinhos, amor no seu sentido mais elevado e, sobretudo, justiça. Morava num casarão colonial onde a harmonia preenchia todos os espaços.
Trabalhamos juntos na Carteira de Crédito Industrial do Banco do Nordeste, em Fortaleza, na Rua Major Facundo, a rua das mariposas, onde o velho Severino curtia as noites com poemas, risadas e cerveja.
Minha base de trabalho era o Recife e eu viajava com freqüência para Fortaleza onde permanecia uma semana ou pouco mais. Eu me hospedava no hotel que ficava no final da rua Major Facundo, outrora aristocrático,
mas que ainda conservava sua posição: de frente para o mar.
Certa ocasião o Aldenor me disse:
-- Galego, na próxima viagem você não vai para hotel. Vai ficar hospedado lá em casa.
Agradeci muito, não queria causar incomodo , essas coisas, mas não houve jeito. Ao desembarcar o Aldenor estava no aeroporto me esperando. Fiquei contente, até porque não conseguia esconder uma curiosidade mórbida: descobrir como é que ele administrava uma casa com cinco mulheres. Foram dias proveitosos durante os quais eu tive a oportunidade de discutir com ele algumas idéias que eu vinha fermentando sobre o desenvolvimento industrial do Nordeste, e pude apreciar o amor que aquelas mulheres dedicavam ao seu Messias.
Solícitos ao extremo, tanto ele como sua esposa Maria desdobravam-se em atenções, cuidando dos menores detalhes para que eu me sentisse à vontade sem, contudo, exercer qualquer pressão. Cuidavam especialmente da cozinha. Entre as iguarias que a Maria preparava estava a paçoca, prato preferido do Aldenor. Embora tivesse esse nome a paçoca no Ceará não era a nossa conhecida paçoca, feita de amendoim e açúcar. Aquela era uma combinação de carne seca e farinha de mandioca socadas num pilão. Uma delícia! Todos os dias comíamos paçoca. Estou exagerando. Não era todos os dias. Dos oito dias que passei lá só comi paçoca em sete deles.
Certamente a memória organoléptica do Aldenor não era das melhores porque certo dia, na hora do jantar, o único jantar em que a paçoca não compareceu, ele virou-se para a esposa e disse:
-- Amôooor! Há quanto tempo você não faz uma paçoca, você poderia preparar amanhã, estou sentindo falta. E a paçoca retomou o seu curso.
Na véspera da minha partida – eu viajaria às seis horas da manhã – Aldenor declara:
-- Amanhã vou lhe deixar no aeroporto.
Recusei peremptoriamente:
-- Não vou permitir, vou chamar um taxi e...
-- Nada disso. Tomamos café com o bolo que a Maria fez...
-- Pior ainda. Não posso deixar que a Maria acorde a essa hora para fazer café, eu tomo no aeroporto.
A discussão não terminava, eu não conseguia persuadir o Aldenor. Eu me sentia realmente mal com o incômodo que estava causando e resolvi apelar
para um argumento que causasse impacto. E saí com esta idiotice:
-- Escuta, você não pode me levar no aeroporto amanhã, sabe por que?
Porque, para começar, vai chover durante toda a viagem, depois vai furar o pneu do carro e, se duvidar, você ainda vai bater com o carro na volta.
O Aldenor não dirigia, só andava de taxi e, assim, na manhã seguinte o taxi estava na porta. Embarcamos em silêncio, eu ainda constrangido. A Maria nos acompanhava.
Chegamos, retiramos a bagagem e ficamos sob uma marquise, a dois metros do taxi, fazendo nossas despedidas. Depois do último abraço, quando já estava para sair, percebi que uma chuva fininha começava a cair.
Lembrei-me das bobagens que eu havia falado e não deixei por menos:
Está vendo, Aldenor, já começou a chover. Agora só falta furar o pneu...
--PPPPffffffff...fffff...ffff...fff...ff...f...!
Todos olharam para o carro a tempo de ver o pneu traseiro direito baixando...baixando...
Só me lembro da voz do motorista, perfilado ao longo de seu carro:
-- Que boca!
Encontrei o Aldenor quando veio ao Recife, duas semanas depois:
-- Você não sabe mas naquele dia, quando voltava do aeroporto, a chuva engrossou e um carro que vinha numa transversal derrapou, e quase nos acerta.
Sei que alguém poderá não acreditar nesta história. Não me ofendo por isso. Eu mesmo passei a vida me perguntando por que foi que isso aconteceu. E se o escrevo é porque quero que fique registrado. Tenho medo de que um dia eu chegue a pensar que isso nunca ocorreu. Perguntem ao Aldenor.

Luigi Spreafico

quarta-feira, 7 de abril de 2010

A Hecatombe da Pracinha



Claudia Bontempo

Outro dia levei um pontapé no peito em Ipanema. Não foi de um pivete que ataca senhorinhas na rua para roubar-lhe os pertences. Nem de um pitboy treinando para ser feliz. Sequer me deixou com um hematoma roxo, visível a olho nu. Foi uma pancada mesmo na alma, que demorará muito para sarar e, toda vez que eu me deparar com o que me machucou, voltarei a sentir a dor da primeira vez.

Eu vinha de carro pela Visconde de Pirajá, ouvindo uma musiquinha no rádio, quando o trânsito começou a ficar lento ali pela altura da rua Vinicius de Moraes. Pensei que poderia ser da feira hippie, já que era domingo. Distraída, meio aborrecida, fiz umas continhas de cabeça, espiei as vitrines de algumas lojas e conversei com meus botões em voz alta, só para não perder o costume de falar sozinha de vez em quando.

Observei os sinais abrirem e fecharem várias vezes, fiz o movimento de pés entre a embreagem e o acelerador à exaustão, tamborilei com os dedos no volante. Era Ipanema engarrafada, numa tarde perfeitamente entediante.

Mas de repente, meu coração disparou e minhas pernas ficaram trêmulas. Comecei a suar e a ter calafrios ao mesmo tempo, meus olhos viam algo, mas não acreditavam no que estava ali à minha frente. Seria uma alucinação com certeza. Aquilo não poderia ter acontecido. Ninguém no mundo seria capaz de tamanha iniqüidade. Olhei em volta, a fim de ter certeza de que todos ao meu redor estavam tão horrorizados quanto eu. Mas só vi pessoas agindo como se nada estivesse acontecendo. Cada vez que me aproximava da Coisa, mas o mal estar tomava conta de mim.

Dizem por aí que na iminência do fim, fazemos um flashback de nossa vida, mas o que me veio à memória naquele momento foi a lembrança do meu primeiro beijo na boca; Estávamos na praia quando começou a chover, saímos correndo de mãos dadas, meu coração aos pulos de alegria, ao passarmos pela General Osório, ele me abraçou a fim de me proteger da chuva e nos beijamos , no ambiente bucólico da pracinha.

Voltei à realidade, antes que morte do meu sonho se apoderasse de mim. Confusa, cheguei a acreditar que estava diante de um ícone da arquitetura contemporânea, ou que talvez eu estivesse negando a praticidade do futuro, a sua ousadia ,o seu valor. Mas confesso que até hoje não me convenci e ainda estou a me perguntar; que mente perversa foi capaz de projetar a saída da estação do Metrô da Praça General Osório ?

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Somos felizes?!


O rosto curtido, provavelmente pelo sol do nordeste, rugas de quem trabalhou na lavoura. Usava um chapéu fantasia que ornava com os cabelos grisalhos na altura dos ombros.Camisa listrada de vermelho e branco, acho que era de cetim, e calça verde escondendo as longas pernas.. Deu uma última tragada na guimba, soltou a baforada e sorriu para mim. Era uma segunda-feira cinza de outono. O homem-da-perna-de-pau entregou-me um papel com a propaganda de uma tinturaria nova no bairro. Na verdade este é o final deste texto que pretende ser uma crônica.



Comecei a esboçá-lo quando levava minha filha mais velha á escola. Vi uma senhora com roupão de banho, indo, provavelmente para a hidroginástica. Era uma senhora elegante, que combinava perfeitamente com aquele roupão azul marinho de veludo, com um emblema em dourado, talvez um brazão de família, sei lá...


Foi esse o mote que me desencadeou o esboço para esta crônica. Vendo o roupão, na mesma hora, me lembrei, que outro dia, vi um senhor muito distinto, vestido num desses roupões atoalhados, bem do tipo dos oferecidos em hotéis cinco estrelas para atestar luxo e requinte.O senhor ia todo faceiro, acho que para a natação, passou por um garotinho que olhou para trás mais de uma vez incrédulo. O garotinho devia estar pensando o mesmo que eu e que você caro leitor. Que estranho, que despudor, passear por aí como quem sai do banho!


Deixei a menina na escola, o carro na garagem e sai para minha caminhada matinal. Vinha pensando no roupão. Lembrei-me de minha mãe que usava um roupão que naquele tempo chamava-se robe. Robe-de-chambre, um galicismo que quer dizer: vestimenta comprida para ser usada em casa. Na verdade o que minha mãe usava, quando nos acordava para irmos à escola era um peignoir – penhoar também do francês: peça de vestuário feminino, que se usa pela manhã ao acordar ou após o banho.


Mamãe nos chamava para a escola, depois se vestia e todos tomávamos o café-da manhâ, juntos. Café-com-leite e pão com manteiga. Sem culpa e sem calorias a mais ou vitaminas a menos.


Recapitulando, o roupão de banho, lembrou-me o robe, que me levou aos seis anos e a minha mãe. A sensação de segurança, de acolhimento, de felicidade. Uma sensação gostosa e que me levou para longe da crítica que eu pretendia fazer neste texto às pessoas que saem à rua de roupão. Na verdade eu não tenho absolutamente nada com isso, e então porque criticar! Talvez porque era uma segunda-feira cinzenta de outono e meu coração também estava cinzento.


E o moço da perna-de-pau do início do texto? Ele me deu um sorriso acolhedor, além do fato de estar trabalhando com alegria sob a chuva em condições precárias. Que motivos eu teria para tanta melancolia?