quarta-feira, 30 de junho de 2010

O Último Conto de Réis


Claudia Bontempo

Todo ano era a mesma aflição. Tínhamos que dar o dinheiro do presente da professora. Eu ficava pedindo para a vó e ela me enrolando, dizendo que ia dar. Ia dar e não dava. Eu suspeitava que a mãe representante da turma, uma senhora de cabelos curtos e nariz fino, toda maquiada com pó de arroz e batom, me perseguia. As vezes, eu atravessava a rua para que não me visse, mas ela tinha olhos de águia e vinha por trás com aqueles dedinhos finos que me cutucavam as costas. Eu ficava gaga de susto até para inventar as mentiras. Ela soltava um risinho de canto de boca e falava; - então, amanhã você traz, né? Esquisita, mesmo.Parecia que se divertia com a minha agonia.

O problema é que ninguém lá em casa tinha dinheiro nem para o presente do pessoal da família, que dirá dos que não eram. Aniversário era dia de bolo e olhe lá. Ficava todo mundo contente de poder variar e não ter que comer pão com margarina no lanche da tarde. A gente cantava parabéns e depois comia o bolo inteiro de uma vez.

Mas teve um ano que eu resolvi me virar e tirar aquela mãe representante da minha cola já que eu vivia sobressaltada pela rua. Peguei uns jornais velhos para servir de banca, surrupiei uns gibis da coleção das minhas irmãs e fui vender na pracinha. Se o meu pai visse aquilo ia me encher de sermão e me dar um passa fora de volta para casa.Mas tive a idéia de colocar um boné de disfarce. Fiquei plantada por lá e logo apareceu o primeiro comprador. O pai da Marguinha me reconheceu, mesmo eu disfarçada, e comprou logo toda a mercadoria, uns 5 gibis .

Cheguei em casa, aliviada, mas quieta para ninguém descobrir que eu já tinha o dinheiro do presente da professora. Mas aí meu pai me chamou no quarto e falou- Olha aqui, toma um conto de réis que você está precisando. Ele falava com o nome antigo do dinheiro que já tinha mudado para cruzeiro, mas eu entendia mesmo assim. Aceitei. Agora eu tinha dois contos e fiquei pensando como é que ia gastar sem o pessoal saber. Estava toda enrolada, pois as meninas não tardavam iam dar falta de uns gibis da coleção. Tinha resolvido um problema e criado dois.

Na manhã seguinte quando fui para a escola, vi a mãe representante de turma e dei-lhe o dinheiro. Ela pegou com as pontas dos dedos- finos- olhou com desdém e falou ; – Um cruzeiro ? e fez ; - “tsc,tsc”. Dei de ombros e saí correndo sem nem olhar para traz, já pressentindo que tinha dado pouco.

À tarde na hora de sempre ninguém me chamou para ir comprar o pão. Tomamos um mingau de fubá que improvisaram lá para a gente e até que estava bem gostoso e quentinho. Mas as meninas reclamaram que não tinha pão e a vó falou que o meu pai tinha dado o último conto de réis dele para o presente da minha professora. Sem dinheiro, sem pão. A meninas me olharam de banda. E o pior é que eu tinha o dinheiro para comprar o pão, mas não me lembrava de nenhuma história para contar.

De noite eu estava tão atrapalhada das idéias que contei tudo para o meu vô. Dei o dinheiro para ele devolver para o pai da Marguinha e pedir de volta os gibis das meninas. O seu Edgar era um cara legal, entregou os gibis e ainda deu gargalhada.

No dia do aniversário na escola, a professora ficou feliz com a sandália branca que ganhou da turma. Meu vô resolveu tudo direitinho.

domingo, 20 de junho de 2010

O Presente de Casamento


Vejo-me obrigado a transgredir. O tema que nos foi dado é, sem dúvida, palpitante, mas me obriga a uma pesquisa para a qual não estou habilitado. Se fosse Dante ainda arriscaria alguma coisa – não porque o considere melhor poeta, entendam bem - mas porque, de Camões, nunca fui “além da Taprobana” e, muito menos, “por mares nuca dantes navegados”. Não me atrevo. Fico em terra firme, agarrado a estas memórias que agora, ou me fazem rir, ou me fazem chorar, porque algo sempre fazem. Memórias, sempre memórias! Para que servem? Para serem lembradas.

O Presente de Casamento



O espetáculo das Cataratas de Sete Quedas, visto do céu, era deslumbrante. Eu estava dentro de um DC3 que levava somente dez passageiros. O avião fazia vôos rasantes tão baixos que a água, borbulhando ao despencar no abismo, respingava nas janelas. Dividido entre o medo e o deslumbramento, eu mal conseguia respirar. É impossível descrever aquelas cenas, como é impossível esquecê-las. E pensar que as Sete Quedas foram varridas do mapa.
Era o ano de 1963. Eu queimava a mufla no “Programa de Reequipamento da Indústria Têxtil do Nordeste” implantado pelo ministro Celso Furtado na recém criada Sudene. Fui indicado para fazer um curso de “Técnico em Desenvolvimento Econômico”, promovido pela Cepal - Comissão Econômica para a América Latina, um organismo das Nações Unidas - e ministrado no Rio de Janeiro. Terminado o curso, dez alunos foram selecionados para conhecerem o estado do Paraná. O Governo do Estado queria divulgar o seu potencial econômico para atrair investimentos e encontrara naqueles técnicos os veículos adequados. E assim visitamos indústrias, cafezais, plantações de mate e, o mais importante, culturas de algodão ainda incipientes e em fase de experimentação. Visitamos também jazidas de xisto betuminoso de onde a Petrobras esperava , curiosamente, extrair petróleo.
Os meus colegas de curso vinham de diversos Estados e nem todos eram economistas. Havia engenheiros, sociólogos e também um jornalista, a figura mais notável de todo o grupo. A ele devo a minha reeducação na cidade do Rio de Janeiro de onde eu havia saído muitos anos antes. Eduardo Antônio Alves era jornalista da Revista Visão, o semanário de opinião lido por todos os executivos do país. Eduardo era do Rio de Janeiro, um modelo de carioca: sempre alegre, divertidíssimo, irreverente e brincalhão. Ele me dizia:
-- Galego, o que é que você está fazendo lá no Pernambuco? Você está perdendo tempo lá. Você tem que vir pra cá, rapaz. Você sabe comer de talher, sabe dar nó na gravata, tem tudo o que precisa pra trabalhar aqui. Olha pra mim, eu tenho um bom emprego, ganho bem. Eu trabalho com as duas armas mais poderosas que existem: o medo e a vaidade. Vem pra cá!
A viagem fluía alegre e descontraída, entrecortada por almoços de frango com polenta e vinho “dos colonos”. O vinho não era lá grande coisa, mas eu também não era. Um dia o Eduardo entrou no meu quarto, com ar sisudo:


-- Seu cabeça de bagre, vê se desgruda dessa agenda e presta atenção no que acontece em volta.
-- O que é ?
-- Você não viu que a Dalva não tira os olhos de você? E você não faz nada?

Eu não havia notado. Dalva Regina era uma das melhores alunas do curso. Formada em Economia, preocupava-se com as desigualdades sociais e admirava o trabalho que vinha sendo feito pela Sudene. Era filha de um almirante, presidente de um grande estaleiro, um enorme estaleiro. Eu conversava de vez em quando com ela como se fosse uma extensão da aula, e sempre a respeito de assuntos relacionados com o desenvolvimento econômico.

-- Você está maluco, Eduardo, não vi nada disso.
-- E você está cego! Deixa de ser bobo, rapaz. Casa com a Dalva!

Comecei a prestar atenção. De fato havia qualquer coisa de significativo naqueles olhares. Era impossível permanecer indiferente.
Avaliei bem a situação e os meus sentimentos, e afastei qualquer possibilidade de envolvimento. Voltei ao meu frango com polenta e ao vinho vagabundo. Eduardo voltou à carga:

-- E aí, pau de arara? Você acordou?

Confessei-lhe que de fato havia notado os sinais de aproximação, mas que iria ficar longe.
-- Deixa de ser idiota! Casa com a Dalva, rapaz, você vai ganhar um navio de presente de casamento!

A viagem chegou ao fim. No vôo de regresso o pequeno avião tornou-se imenso para os dez passageiros. Cada um sentou-se em um banco, longe dos demais, em silêncio. Pareciam todos enternecidos com o fim da viagem e com os laços que se haviam formado durante aquele convívio. Sentei-me também sozinho junto a uma janela, olhando as nuvens, pensativo. Dalva chegou e sentou-se ao meu lado.

-- Gostou da viagem? Pena que foi curta. O que é que você vai fazer amanhã?
-- Nada especial. Vou ficar dois ou três dias no Rio e voltar para Recife.
-- Posso lhe mostrar um pouco do Rio antes de você viajar? Você gostaria?
-- Gostaria!
-- Espero você amanhã, lá em casa, às quatro da tarde.

Deu-me o endereço e voltou ao seu lugar.
Fui pontual. Quando cheguei Dalva me esperava na varanda, sentada numa cadeira de balanço.

-- Você se incomoda se eu dirigir?

A sua pergunta tinha motivos: estou falando de uma época em que as mulheres mal começavam a dirigir automóveis.
Saímos. Ela atravessou o centro, chegou à Praça Saens Peña e tomou o caminho do Alto da Boa Vista. Ela sugeriu pararmos no Bar dos Esquilos. Lembro-me bem, ela pediu um whisky sour. Eu acompanhei. Continuamos a viagem com paradas na Vista Chinesa, na Mesa do Imperador, nas pequenas trilhas que serpenteavam pela mata.
Conversamos muito. Subdesenvolvimento, política externa, Cuba, Ligas Camponesas, imperialismo, dominação econômica, algodão versus fibras sintéticas. Ela nada perguntou sobre a minha vida pessoal.
Havia pausas, quando nos fitávamos longamente, sem uma palavra.

Lá embaixo as luzes começaram a piscar, delineando o perfil da cidade. Começamos a descer em direção à Barra da Tijuca.

-- Você ainda tem dinheiro?

Novamente é preciso explicar: Naquela época nenhum cavalheiro permitiria que uma mulher pagasse uma conta. Eu me havia preparado.

-- Então vamos jantar.

Ao chegarmos na baixada ela tomou a pequena ponte que leva ao restaurante da Ilha dos Pescadores. Ali ficamos, lendo o cardápio, sem pressa, recordando a viagem, rindo bastante e... suspirando.
Eu estava sorvendo um gole do Pinot Grigio que ela mesma havia escolhido quando, por um reflexo no copo, percebi que alguém se aproximava da nossa mesa:

-- Minha filha, você ...
-- Papai!
-- ... está aqui,... e eu preocupado ...
-- Mas eu avisei a mamãe que ia sair e para onde ia. Ela não lhe falou?
-- Sim, sim, está certo, está tudo bem, tudo bem ...

Assustado, levantei-me de sobressalto e bradei:

-- Almirante, o senhor não quer sentar-se, jantar conosco?
-- Não, não, muito obrigado, meu filho, bom apetite, boa noite, boa noite...

E, como chegou, se foi. Dalva não fez o menor comentário. Continuou sorvendo seu vinho em pequenos goles, intercalados por um olhar matreiro, como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo. Para mim, acostumado com as normas severas que sempre pautaram o meu trabalho e a rígida disciplina imposta no convívio familiar, aquilo era inusitado. Por um momento eu me senti como se estivesse raptando a moça, mas logo me recuperei e, considerando-me já íntimo do Almirante, continuamos a conversa com muita naturalidade. Eu sentia ternura na sua voz e comecei a ficar abalado.

-- Não está tarde para você voltar?
-- Quando é que você viaja?
-- Marquei para depois de amanhã.
-- Você não pode ficar mais alguns dias?
-- Não posso, tenho trabalho. Gostaria muito.
-- Você vai me escrever, não vai?
-- Vou, sim.

Nunca escrevi. Na pele do Severino Mandacaru eu andava preocupado em melhorar as condições de trabalho nas fábricas do nordeste, tarefa da qual a gloriosa revolução de 64 me liberaria, sem consultar-me. Indignado fui-me embora.
O tempo passou. Eu acabava de voltar do Chile e travava uma luta inglória para readaptar-me à nova realidade do país. Caminhando, de cabeça baixa, pela Rua do Ouvidor, ouço um grito vindo da outra calçada:

-- Spreafico!

Era o Eduardo, de braços escancarados, pronto para me abraçar.
-- Que fim você levou, seu nordestino falsificado, onde é que você anda, quanto tempo!
-- Ah!, estive no Chile, passei lá um tempão, casei, tenho dois filhos. E você, o que está fazendo?
-- Eu tenho uma editora. Também casei. .. Adivinha com quem?
-- ?????
-- Com a Dalva! Você não quis ... !

E soltou uma estrondosa gargalhada.

Luigi

sábado, 19 de junho de 2010

Literatura Naif


Quando, trezanosatráz, deu-me na telha escrever memórias, pensei que poderia usar a expressão “literatura naif” para justificar os meus erros de português. Erros elementares, banais, que continuam comigo até hoje. Nem sequer lhes sei os nomes. Mas, ou eu escrevia, ou estudava gramática. Então pensei: se um pintor naif, que nunca aprendeu perspectiva geométrica, projeção, épura, poliedros e o que mais for, é contemplado nos museus e galerias por que um escritor que escorrega na sintaxe e nas vírgulas não pode ser lido? O que ele precisaria, obviamente, era ter algo de interessante e bonito para contar. Isto a vida me tinha dado (desculpem o metinha), não precisava inventar nada, bastava contar a verdade.

Naquela época descobri um blog que se chamava “blog do escritor” , um blog sério, de gente competente, pois entrevistava grandes escritores. Como ele oferecia um espaço para comentários perguntei se a expressão “literatura naif” era usada e em que circunstancias. A resposta foi curta, grossa, clara, precisa e contundente: “Toda a literatura é naif”. Nem mais uma palavra.

Fui, então, aos sites de busca cuidando para não cair nas trampas de costume. Encontrei coisa interessantes como, por exemplo, “Cervantes e a Literatura Naif”, um ensaio sobre o Don Quixote e o blog de uma professora portuguesa que contracena com escritores - vamos chamá-los - primitivistas. Parei de pesquisar porque, como aconteceu com a gramática, ou pesquisava, ou escrevia.

Voltei às minhas lembranças e comecei a avaliar o que havia aprendido em matéria de arte naif. No meu tempo de Severino conheci dois pintores primitivistas que tiveram alguma projeção: Gina, em Olinda e Chico da Silva em Fortaleza. Ambos estavam no auge da fama dentro do seu mundo. Gina expunha nas melhores galerias do Recife (vá lá, não eram muitas) e Chico acabava de voltar de uma exposição em Paris encerrada com muitos aplausos e todos os quadros vendidos. Nessa ocasião Chico da Silva foi consagrado por Andre Malreaux, que o colocou entre os dez melhores primitivistas do mundo. Ambos caíram em desgraça junto aos “marchand”, vale dizer, junto ao mercado de arte: Gina por não cumprir os compromissos nas exposições que realizava - eu mesmo participei de um desses fiascos quando, com grande dificuldade, em plena ditadura e com a ajuda de alguns amigos - arranjei-lhe um salão para que expusesse em São Paulo e ela não compareceu; o Chico, por ter permitido que uma sobrinha imitasse a sua pintura inundando as calçadas de Fortaleza de quadros a dois tostões. No auge da fama os turistas deslumbrados se abarrotavam de galos e dragões habilmente impingidos pelos camelôs cearenses, indubitavelmente os melhores do mundo.

Chico bebia muito. Misturava cerveja com whisky Old Eight, mistura que, descobri mais tarde, era, pelo menos para ele, alucinógena.
Passei algumas noitadas bebendo com ele num botequim vizinho ao casebre, pouco mais que um mocambo, onde ele morava. Falava sem parar. Ouvi-lo era um deslumbramento. Ele descrevia os animais fantasmagóricos que a sua imaginação criava com o mesmo furor com que os pintava. Ouvi-lo falar sobre a ditadura era como ler o Samba do Crioulo Doido, do Stanislaw Ponte Preta, só que dez vezes melhor.
Foi naquela época que escrevi “A Centenária” , que era apenas um conto e não uma memória. Mas que se tornou memória porque, inspirado numa noite na cadeia, ficou soterrado durante quarenta e dois anos. Desenterrei-o porque achei que seria ele que me consagraria como escritor naif.

Bem, é isso aí. Amanhã começo a estudar gramática. Essa história de escritor naif não vai colar.

Luigi

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Nos Toscos Fios

À Roberta Bontempo, musa inspiradora, a quem devo
o título destas toscas trovas. Com todo o atrevimento,
Severino Mandacaru

Nos toscos fios
Das facas frias
Falando fino
Desfiro farpas

Tento escrever
Com toscos textos
Meus castos casos
De histórias tolas

Qual mosca morta
Mofando fico
Não faço falta
No mundo imundo
Da fama falsa

Não fales nisso
É só o que peço
Eu sou omisso
E réu confesso

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Cai o Short




Claudia Bontempo

O Francisquinho dizia que era perseguição da minha cabeça, mas o Jorge Nelson nunca me inspirou confiança. O embuste já começava pelo nome, que era grande e não cabia direito na boca , na hora de denunciar no pique esconde, ele sempre chegava antes que acabássemos de gritar e se safava.

Tinha umas manias esquisitas de puxar os nossos shorts e de enfiar o dedo no nariz e esfregar na gente. Aparecia cheio de cecê, já de manhã, e eu tapava o nariz com a mão quando ele levantava o sovaco. O Francisquinho, para despistar, afrouxava o riso e afinava a voz, tamanha era a subserviência diante do porcalhão, só porque ele vendia, caro, carretel de linha com cerol para empinar pipa.

Nossa mãe não deixava a gente usar vidro moído na linha; -“ é um perigo, corta o pescoço, que sangra igual ao de galinha ao molho pardo” diziam. Eu ficava apavorada, perdia a concentração na brincadeira, e me atrapalhava toda. Mas não podia entregar o Jorge Nelson, senão o Francisquinho me ameaçava de ser café com leite no pique pega.

Uma vez a D. Lurdes, mãe do Francisquinho, colocou um pedaço de pudim de leite para cada um de café da tarde, mas antes de comer, nós tínhamos que lavar as mãos. Claro que o Jorge Nelson correu na frente, lavando a dele de qualquer jeito, sem nem esfregar o sabão, o Francisquinho demorou mais um pouquinho e eu fiquei por último pois antes queria fazer xixi . Quando sentei à mesa, meu prato estava vazio, olhei para um lado e para o outro, demorando para perceber que o meu pedaço de pudim já estava na pança do trapaceiro, os dois rindo à toa de mim. Fiz menção de reclamar, mas o Francisquinho disse que eu ficaria para trás, pois já ia escurecer e não daria tempo de terminarmos a partida de bolinhas de gude. Fui arrastando o chinelo, com água na boca e sem pudim.

Tudo no Jorge Nelson tinha um quê de trapaça. Se as coisas estavam muito corretas, ele jogava uma armadilha para retirar o seu benefício. Eu avisava, suspeitava, mas era minoria, já que ele era o Tal. Foi preciso acontecer algo muito tosco para desmascará-lo de uma vez por todas.

O Francisquinho era Botafogo doente, um dia, a criançada da rua viu um balão enorme, enfeitado com a “Estrela Solitária”, cair no quintal da casa do avô dele. Corremos todos para ver o resgate do balão, que estava preso nos galhos de um abacateiro. O Jorge Nelson veio devagar e todo solícito se ofereceu para subir na árvore , prontamente o Francisquinho cedeu o lugar, cheio de orgulho por ser o neto do dono do domicílio em que se encontrava o presente vindo do céu. Sozinho, Jorge Nelson desembaraçou o balão dos galhos e desceu como um azougue, enquanto a meninada batia palmas. Quando o Francisquinho já estava com a mão estendida a espera de que lhe entregasse , Jorge Nelson puxou o short dele, deixando-o nu, e aproveitando-se de sua vergonha, na tentativa de esconder o bumbum e todo o resto, fugiu com o balão para bem longe. A gargalhada foi um assombro e veio gente até da outra rua para ver o que era.

Meu amigo, mesmo depois de se recompor, chorou de raiva e jurou que nunca mais queria ver o velhaco. Fiquei com tanta dó, que menti e disse ter fechado os olhos e não ter visto nada quando ele ficou pelado. Acho que ficou mais calmo.

No dia seguinte jogamos peteca e eu ganhei.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

O Coronel e Eu



A vida como ela é. A vida, é como ela é, ou como a vemos? A vida é como a vemos ou como a fazemos? A vida é a vida que nos é dada. Porque de nada serve conjecturar sobre como teria sido a nossa vida se tivéssemos tomado esta decisão e não aquela. Porque não nos é dado controlar as emoções no momento de fazer opções. E porque de nada serve arrepender-se de decisões tomadas. A discussão filosófica sobre destino e livre arbítrio, razão e coração, amor e paixão, é uma discussão filosófica. O que resta é a vida como nos é dada. Então vivamos a vida como a vemos. Vivamos a vida como a fazemos. Vivamos a vida como ela é. Então, deixem-me que lhes conte a vida como ela foi.

Quem percorresse a pequena estrada de terra batida que ligava Recife a Olinda, ao chegar ao Varadouro, seria surpreendido pelo cheiro pungente de goiabas e cajus. Ali, bem cedo, caboclos curtidos pelo sol, sentados junto aos seus balaios, esperavam que a Fábrica de Doces abrisse as portas para entregar sua mercadoria. O amarelo vibrante das goiabas e o vermelho sanguíneo dos cajus criavam um quadro de Van Gogh.
O forte aroma das frutas na manhã úmida inundava o quarteirão e embriagava os sentidos para o resto do dia. No fim da tarde, um outro cheiro, ainda mais forte, emanava do prédio da fábrica indicando que a goiabada estava pronta. E este perfume, este sim, ficaria impregnado pelo resto da vida.

No Varadouro a estrada embicava para a esquerda, tornando-se estreita, e partia em direção à cidade de Paulista. Um nome simplório, para a cidade que era: duas grandes fábricas de tecidos, duas longas chaminés enfeitiçando o céu. A Igreja, a Maternidade, o Hospital, a Funerária, o Cemitério. Doze mil operários. Quatro teares por tecelã. E um dono: o Coronel.
O Coronel tinha muitas esposas e cada esposa tinha muitos filhos. O Coronel a todos provia e de todos cuidava, pois todos constituíam a sua família. Os filhos estudavam na Suíça ou na Alemanha conforme o gosto de cada um.
O Coronel construíra um império empresarial que não se limitava àquelas duas fábricas. Tinha também fábricas na Paraíba e em Minas Gerais, todas gigantescas. E duas redes enormes de comércio varejista: As Casas Pernambucanas no Sul e as Lojas Paulista no Nordeste.
As terras do Coronel ocupavam municípios inteiros, tanto em Pernambuco como na Paraíba. Nelas eram cultivadas extensas florestas de eucaliptos que forneciam o combustível necessário para movimentar as turbinas geradoras de energia elétrica, tanto para as fábricas como para toda a cidade. Tinham suas próprias estradas de ferro serpenteando por dentro daquelas matas. Lembro-me, com saudades, do apito dolente da locomotiva, no meio da noite, quando entrava na cidade.
O Coronel tinha também uma fábrica de pólvora que supria as necessidades do Exército Brasileiro. E tinha uma escuderia, onde criava os cavalos de corrida mais famosos do país. Quem não se lembra da égua Tirolesa, muitas vezes campeã, que se tornou mais célebre que a Greta Garbo? Os cavalos eram alimentados com aveia e puro mel, extraído dos apiários que circundavam as matas de eucaliptos.

Toda a cidade – e sua população – dependiam do Coronel. E o Coronel era magnânimo e justo. Cada operário tinha a sua casa, dotada de todos os serviços, com área proporcional ao tamanho da família. As casas dos gerentes e chefes de seção eram maiores e dispunham de um jardim e um quintal com muitas fruteiras. Meu pai era gerente das oficinas mecânicas, o que incluía a caldeiraria e as turbinas de energia elétrica.
As casas eram mobiliadas e, como parte disso, recebíamos, duas vezes por ano, um jogo de roupas de cama e mesa. Eram lençóis e toalhas estampadas com motivos florais, de cores alegres e brilhantes, que traziam o perfume do algodão puro, o barulho das máquinas, a voz das tecelãs e o apito da chaminé. Uma vez por semana recebíamos em casa lenha e carvão para a cozinha e, diariamente, uma caçamba de gelo para abastecer a “geladeira”, o refrigerador da época.
A poucos metros da nossa casa ficava a “Casa Grande”, residência do Coronel. Era um palacete de três andares em tijolo aparente, e linda arquitetura, no centro de um grande parque, cheio de árvores e bichos.

Não longe da minha casa morava também uma das esposas do Coronel. Tinha duas filhas: a Linda e a Mais Velha. Tinha também uma filha de criação, a Moreninha. Minhas irmãs fizeram amizade com elas brincando juntas quando pequenas, amizade essa que atravessou a adolescência. Aos dezessete anos eu acabei me envolvendo nessa amizade e comecei a freqüentar a casa atraído, devo confessar, mais pelo olhar sedutor da Moreninha do que pelo bolo Souza Leão que lá se preparava.
Os saraus se tornaram freqüentes e eu comecei a perceber que a Linda se aproximava de maneira cativante. Conversávamos muito, às vezes em companhia da mãe que me perguntava como eu andava nos estudos e sempre tinha uma palavra de incentivo. Um dia Linda me convidou para ir ao cinema. Aceitei. Na tarde seguinte um automóvel preto, cujo comprimento superava a minha noção de veículos automotores, parou na minha porta.
Cine São Luiz, no Cais da Rua da Aurora, aos pés da Ponte Duarte Coelho. O cinema está lá até hoje e, se procurarem bem, vão encontrar resquícios do suave perfume que ela usava.

Surgiu um namoro. Não sei como, porque só me dei conta disso quando começou a correr a notícia e todos aplaudiam o feliz encontro. Nessa altura eu havia completado vinte anos e estava prestes a terminar o curso técnico de indústria têxtil que fazia no Rio. Portanto eu passava o ano inteiro fora de casa para onde eu voltava nas férias longas de fim de ano, já que nas férias de Junho eu me trancava nas oficinas da escola para montar e desmontar máquinas.
Com o tempo notei que alguma coisa não encaixava. Eu não sentia encantamento naquele namoro. Apesar da longa ausência eu não sentia saudades. Sentia um apreço muito grande pela menina, seu olhar meigo, seus gestos lentos, sua conversa inteligente, mas aquela centelha que gera labaredas e devora os sentidos, essa não aparecia.
Naquele ano, eu andava concentrado nos estudos e não podia imaginar um namoro que terminasse em casamento, por maiores que fossem as perspectivas de uma vida confortável à sombra do Coronel. No Rio de Janeiro, fora os estudos, a minha ocupação era aprimorar a minha biografia com idas cada vez mais freqüentes ao Mangue. O Mangue! A cidade sagrada que não tinha dia nem noite. Ali aprendi muito. Na voragem do desejo eu via o sofrimento. Na subjugação do sexo eu via a humilhação. Numa palavra de carinho eu via o alento aflorar na expressão contraída de um rosto sem esperanças.

Novamente de férias e o namoro continuou molenga, insípido, sem promessas. Procurei dar a entender à Linda que eu me achava muito jovem para assumir qualquer compromisso sério. Esperei que a minha frieza pusesse fim a tudo sem causar maior sofrimento. Foi quando um dia, pela manhã bem cedo, o mesmo carrão preto parou na minha porta.
-- O Coronel mandou dizer que gostaria de falar com o senhor. O senhor pode ir agora?
Vesti-me às pressas, alisei os cabelos com meu pente Guarany e embarquei. Subi até o terceiro andar do palacete, seis lances de escada, numa viagem que parecia interminável . Cheguei a uma sala vazia que me pareceu do tamanho de um campo de futebol. Bem no fundo uma mesa de reuniões. Sentado à cabeceira, o Coronel, de terno e gravata. Eram sete horas da manhã.
-- Muito prazer. Sente-se por favor.
O Coronel olhou-me fixamente nos olhos:
-- Eu soube que o senhor está noivo da minha filha. Vamos marcar a data do casamento... 20 de Janeiro, está bem para o senhor?
Antes que eu pudesse responder qualquer coisa, como se eu pudesse, ( o que eu ouvi, na realidade, foi algo como: “senta aí quieto e come a tua sopinha” ) ele continuou:
-- O senhor está fazendo um curso de indústria têxtil no Rio, não é mesmo? Falta pouco para terminar, eu sei. Eu quero que o senhor visite a minha fábrica na Paraíba e me dê a sua opinião. O motorista vai pegá-lo amanhã às sete horas. Prazer em conhecê-lo, senhor Luigi.
Pensei esconder da minha mãe, que me esperava ansiosa, o que havia acontecido, mas não foi necessário porque eu só viria a recuperar a fala muitas horas depois.

Quando cheguei na fábrica, no fim da tarde do dia seguinte, fui recebido pelo diretor que transbordava uma alegria mal explicada:
-- Bem-vido à família, meu caro Luigi! Vamos jantar na Casa Grande. Mandei preparar o seu quarto, espero que você descanse bem. Se faltar alguma coisa é só tocar a campainha, o Mustafá fica de plantão a noite inteira. Amanhã eu lhe mostro a fábrica. Você pode perguntar o que quiser, para você não há segredos. Na quinta feira vamos fazer um passeio de iate. O Coronel mandou organizar um passeio de três dias, só para o pessoal da família. Você vai conhecer os coqueirais, as plantações de caju, os eucaliptos, as oficinas das locomotivas, tudo. E você vai conhecer muita gente da família.

O passeio foi feito. Depois vieram as visitas às escuderias, à fábrica de pólvora, aos matadouros. E vieram também as corridas de cavalos, nas manhãs ensolaradas do Hipódromo com champanhe, ternos de linho branco, saias curtas e chapéus coco. E os almoços. E os jantares.
Era tudo fascinante, mas eu comecei a sentir que o chão me faltava sob os pés. Eu não cabia naquele mundo, porque aquele mundo era grande demais para mim. Eu havia sido ensinado a trabalhar duro desde os doze anos de idade, pendurado no estribo de um bonde debaixo da garoa fria de São Paulo, escondido dentro de um capote muito maior do que eu e tendo como almoço café com pão ou, excepcionalmente, um sanduiche de mortadela, retirados da máquina do “Bar Automático“ por alguns tostões, na Avenida São João, bem perto do Edifício dos Correios. Decididamente aquele não era o meu mundo. Eu ali seria uma fraude.

Marquei um último cinema com Linda. Na saída tomamos um sorvete no Gemba, não longe dali, e nos sentamos no Cais da Rua da Aurora, onde podíamos contemplar o rio. Não fiz nenhum preâmbulo. Expliquei-lhe que não me considerava maduro para um casamento e não queria deixá-la esperando pelo meu amadurecimento, que poderia demorar muito. Seria injusto para ela e cruel para ambos. Por maior que fosse o seu sofrimento aquela era a única coisa honesta que eu poderia fazer. Algumas lágrimas, contidas com esforço, escaparam-lhe e rolaram pelo seu rostinho ingênuo. Minha alma sangrava. Entramos no carro e voltamos em silêncio. E em silêncio ficamos pelo resto da vida.
Logo depois escrevi ao Coronel. Numa longa carta expliquei porque estava “abandonando o iate”. Nosso relacionamento fora extremamente curto. Esperava não deixar mágoas. Não recebi resposta. Nem eu a merecia.

No dia seguinte embarquei num ônibus capenga que percorreu os quinze quilômetros de estrada de barro até a Praia da Conceição, uma praia deserta onde havia uma colônia de pescadores e mais nada. Eu já havia estado ali antes. Dormia num mocambo coberto com folhas de coqueiro e comia lagosta. Não porque eu tivesse uma aprimorada sensibilidade gastronômica mas simplesmente porque não havia outra coisa para comer. Fiquei ali totalmente só, em recolhimento respeitoso, até o fim das férias. E voltei ao Mangue com a consciência tranqüila de que não me havia aproveitado de ninguém.

Luigi

terça-feira, 8 de junho de 2010

E você?

"Escrever é fácil: você começa com uma letra maiúscula e termina com um ponto final. No meio você coloca idéias." (Pablo Neruda)

"Escrever é mandar recado. Ler, entender o recado." (Dady Marlene)

"Escrever é cortar palavras." (Marques Rebelo)

"Escrever é, simplesmente, uma maneira de falar sem que interrompam a gente." (Sofocleto)

"É preciso escrever o mais possível como se fala e não falar demais como se escreve." (Sainte-Beuve)

"Escrever é lembrar-se. Mas ler é, também, lembrar-se." (Mauriac)

"O ato de escrever é a arte de sentar-se numa cadeira." (Sinclair Lewis)

"Somos todos escritores. Só que uns escrevem, outros não." (José Saramago)

"Escrever é ter coisas para dizer." (Darcy Ribeiro)

"Perdoe-me, senhora, se escrevi carta tão comprida. Não tive tempo de fazê-la curta." (Voltaire)

"O estilo há de ser fácil e muito natural." (Padre Antônio Vieira)

"Reescrevi 30 vezes o último parágrafo de Adeus às armas antes de me sentir satisfeito." (Ernest Hemingway)

"Uma história se conta, não se explica." (Jorge Amado)

"Escrevo para que meus amigos me amem ainda mais." (Gabriel García Márquez)

"Não basta escrever certo. Elegância e fluência também contam." (Josué Machado)

"Quem não lê não escreve." (Wander Soares)

"Cada um escreve do jeito que respira. Cada um tem seu estilo. Devo minha literatura à asma." (Fabrício Carpinejar)

"Escrever é um ato de liberdade." (Martin Amis)

"Escrever é uma forma de a voz sobreviver à pessoa." (Margaret Atwood)

"De escrever para marmanjos já me enjoei. Bichos sem graça. Mas para crianças um livro é todo um mundo." (Monteiro Lobato)

"Uma das razões por que escrevo é para descobrir como termina a história." (José Eduardo Agualusa)

"Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um dos dois é burro." (Mário Quintana)

"Existem três regras para escrever ficção. Infelizmente ninguém sabe quais são elas." (W. Somerset Maugham)

"O autor escreve apenas metade de um livro. A outra metade fica por conta do leitor." (Joseph Conrad)

"Corrigir uma página é fácil, mas escrevê-la – ah, amigo! – isso é difícil." (Jorge L. Borges)

"Escrever não é fácil ou difícil, mas possível ou impossível." (Camilo José Cela)

"Escrever é deixar uma marca. É impor ao papel em branco um sinal permanente, é capturar um instante em forma de palavra." (Margaret Atwood)

"Eu escrevo como se fosse salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida." (Clarice Lispector)

"Para escrever bem é preciso uma facilidade natural e uma dificuldade adquirida." (Joubert)

"Escrever não é nada mais senão ter o tempo de dizer: estou morrendo." (Gaëtan Picon)

"Uns escrevem para salvar a humanidade ou incitar lutas de classes, outros para se perpetuar nos manuais de literatura ou conquistar posições e honrarias. Os melhores são os que escrevem pelo prazer de escrever." (Lêdo Ivo)

"Escrever é sacudir o sentido do mundo." (Roland Barthes)

"Escreve claro quem concebe ou imagina claro." (Miguel Unamuno)

"Não gosto de escrever, gosto de ter escrito." (Armando Nogueira)

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Quando eu tinha 17 anos

Quando cheguei aos 17 anos eu estava terminando o curso de Mecânica de Máquinas na Escola Técnica do Recife, uma instituição da Rede Federal de ensino técnico. A prova final foi a construção de um torno mecânico completo. Cada aluno foi incumbido de um componente da máquina. A mim coube o “cabeçote fixo”, a parte mais complexa do equipamento. Isto porque eu era CDF. E dos mais enrustidos. Como CDF eu tinha outros atributos. Nas férias, em lugar de refrescar-me nas águas verdes de Olinda, eu procurava emprego nas oficinas mecânicas do Recife. No contato com o quotidiano áspero do proletariado aprendi muito sobre o comportamento humano, desde a maldade mais perversa até as atitudes de solidariedade, de desprendimento, do sacrifício espontâneo e desinteressado. No ambiente rude das oficinas não havia clemência. Qualquer erro era punido no ato.
Os quatro anos naquela escola formaram o meu caráter. Ruim, devo dizer, mas um caráter. A escola ficava na margem do Capibaribe, onde o rio fazia uma curva. No lado oposto podia-se ver a Fábrica da Torre, com sua altíssima chaminé perfurando o céu. Bem na frente da escola, junto ao barranco da margem do rio erguia-se uma descomunal figueira sob a qual eu me sentava, nas tardes de sábado, à espera do por de sol. E por que nas tardes de sábado? Porque eu morava no alojamento da escola e só ia para casa, na cidade de Paulista, a trinta quilômetros dali, nas grandes ocasiões.
A minha vocação de CDF não me dava paz. Eu precisava praticar na arte à qual me dedicava e achava que as aulas não eram suficientes. Nos fins de semana a escola ficava deserta. A entrada e a saída do alojamento era livre. Não havia sequer porteiro. As oficinas eram localizadas em imensos galpões, divididas por especialidade. Descobri que a grande porta da Fundição tinha uma brecha pela qual eu podia passar confortavelmente. Sábados e domingos eu gastava o dia inteiro praticando a moldagem de peças. Naquela época a moldagem era feita em caixas de areia que, depois de receber o metal fundido – ferro, bronze, alumínio, antimônio e o que fosse – eram desmanchadas e a areia, uma areia especial, evidentemente, era reutilizada. Um dia eu moldei quatro peças, entre elas um disco em alto relevo com o rosto do Cristo com sua linda coroa de espinhos na cabeça. No dia seguinte iríamos fundir bronze. Em lugar de desmanchá-las deixei-as alinhadas junto aos moldes que haviam sido programados. O cadinho cumpriu seu percurso e derramou o metal líquido sob o meu olhar em êxtase. Enquanto o metal esfriava recebemos aulas teóricas do Mestre explicando a técnica usada em cada peça. Menos quatro. Abertas as caixas vejo o Mestre inquieto, prancheta na mão, andando de um lado para o outro, remexendo papeis, contando nos dedos, coçando a cabeça. Os alunos se haviam espalhado, esperando o encerramento da aula.
-- Aconteceu alguma coisa errada, Mestre? , arrisquei.
--Não, meu filho. Só não entendo quem foi que meteu essa cara do Cristo na programação!
-- Deixa pra lá, Mestre. Se não foi programada, distribui aí pros alunos!
E foi assim que eu ganhei um rosto do Cristo em bronze, com sua linda coroa de espinhos na cabeça.
Férias. Tempo de procurar emprego. Vai ser fácil. As oficinas já me conhecem. O diretor da escola manda me chamar e comunica que a Escola Técnica de Industria Química e Têxtil, que ainda estava em construção no Rio de Janeiro, estava oferecendo bolsas de estudo, abertas para todo o país. Pernambuco teria cinco vagas. Seria feito um exame de seleção e os cinco aprovados iriam para o Rio onde seriam submetidos a novo exame para aprovação final. Aconselha-me a fazer as provas.
Embarquei num heróico DC3 que depois de fazer escalas em Maceió, Aracaju, Salvador, Canavieiras, Cabrália e Ilhéus desabou sobre a pista militar do velho Galeão e caminhou, trôpego, até a estação de passageiros. Dalí, uma camionete Dodge, com carroceria de madeira, me levaria até a Rua Bela, em São Cristovão, meu novo alojamento. E a linha 56, do bonde Alegria, entraria na minha vida.

Luigi

Clarissa (Monica Noronha)


Foi aos 17 anos que a conheci. Linda. Rabo de cavalo castanho preso por um lenço colorido, do tipo que se usava também no pescoço. Calça jeans desbotada, sandálias sem salto, uma blusa estranha, meio hippie, colorida nas mangas, o resto azul e preto. E bordados, muitos bordados. Foram justamente os bordados que primeiro me chamaram a atenção, só depois eu olhei o meu primeiro amor. Tentei imaginar como seria o seu rosto com os cabelos soltos, mas o sinal de trânsito abriu, ela atravessou a rua e eu a perdi na multidão de Copacabana. Naquela noite sonhei com ela; a primeira de uma sucessão de noites em que tive medo de nunca mais vê-la. Avistei-a alguns dias depois, comprando picolé de chocolate na padaria. Não resisti e entrei. Trazia comigo apenas algumas moedas, que usei para comprar dois pãezinhos. Suava de pavor de ser descoberto em minha emboscada, pavor de não me sair a voz ao ser atendido. Sentia-me ridículo com os meus olhos incontroláveis a observá-la enquanto tirava o picolé da embalagem. À saída, derrubei uma pilha de biscoitos. O barulho fez com que ela olhasse em minha direção. Pela primeira vez eu quase morri. O meu rosto, naturalmente muito branco, queimava de nervoso, de vergonha e de raiva. Raiva de mim mesmo, raiva de quem eu pudesse culpar pelo desastre. E ela, ainda sorrindo, ajudou-me a recolocar os pacotes no lugar. Saímos juntos da padaria, descobri que se chamava Clarissa; combinamos de andar no calçadão no dia seguinte, de ir ao cinema no sábado à tarde. Convidei-a para o voley das quintas, as praias de domingo tornaram-se mais coloridas e seis anos depois nos casamos. Numa noite de chuva Clarissa não voltou para casa, nem telefonou para avisar que dormiria fora. Passou em casa de manhã para mudar de roupa – roupas que, gradativamente, foram desaparecendo do seu armário. Creio que na época eu já sabia que estávamos nos separando, mas nunca acreditei realmente que teria que reaprender a viver sem o seu sorriso. Um sábado ela me convidou para tomar chope e conversar fora de casa. Avisou que estava me deixando, sem dizer se dividiria o novo apartamento com alguém. Estava linda: vestido branco e preto com bordados nas mangas, o cabelo castanho preso com um lenço de seda. Pela segunda vez eu quase morri. Enquanto as palavras me estilhaçavam por dentro, sem querer entornei meu chope na mesa. Ela me olhou e tentou sorrir - como no dia da pilha de biscoitos, como nos muitos dias que vivemos juntos. Mas agora um sorriso sem cor, somente o esboço do seu sorriso. Pagamos a conta, nos despedimos com beijos no rosto, ela desceu a rua em direção ao novo endereço e desapareceu na multidão. Durante a semana passou lá em casa e levou consigo o que ainda havia de seu. Deixou as chaves escondidas entre as plantas da entrada e eu nunca mais a vi.

Carta a um amigo imaginário (Monica Noronha)


(repostagem)
Merda, eu aqui de novo escrevendo a você. Não vou falar sobre os novos resultados, todos péssimos. Melhor assim, danem-se. Acho que o que eu gostaria de contar é porque desisti. Quiseram me convencer a tentar de novo, e foi difícil resistir à tentação de “tentar”. Tentar o quê? Era agora ou nunca, e foi nunca. Então o problema é o que fazer com o tempo, o que inventar para ocupar o vazio. Já não tenho mais a paciência com o óbvio, meus livros e CDs e coisa e tal. E escrever tornou-se insuportável, a merda do diagnóstico me ronda a cada palavra, alma penada antes do tempo. E também não quero sofrer. Simplesmente a ampulheta foi virada e a areia está no fim, agora. Tempo, sempre o tempo.
Nem sempre tenho certeza de ter feito a coisa certa, quando decidi pelo silêncio. Confesso que têm horas em que a solidão é insuportável, mas pior do que tudo seria ver a compaixão nos olhos dos mortos-vivos que me cercam. A pena é o bagaço do amor. E também confesso os meus medos: medo da dor, medo da solidão, medo da morte, medo da vida. Medo de ser patético no meu medo, de não ser capaz de ir além do óbvio, de ser medíocre até na minha dor. Então prefiro o silêncio, e o abismo da solidão que me isola de tudo. Como agora. Coloco o pijama e sinto o peso dos tecidos sobre o meu corpo seco. Como se minha pele estivesse em contato direto com os meus músculos e os meus músculos expressassem nada mais do que minha insanidade, a fragilidade que carrego comigo por toda a vida, que faz com que respirar não seja simplesmente deixar o ar entra em meus pulmões e depois sair. Uma vez disse isso a um amigo e ouvi de volta que eu estava louco, que respirar acontecia sem querer, independentemente do desejo. Só os náufragos entendem que é preciso respirar. Foi quando entendi os meus espasmos de dor, que por toda a vida precisei lutar contra o meu próprio naufrágio.
Medo de deixar por aqui as poucas, pouquíssimas coisas que eu ainda amo – o que, precisamente? Talvez uns poucos livros, alguns CDs, e ninguém. Acho que isso é o mais assustador: ninguém. Porque é muito límpido para mim o quanto me afastei dos parasitas que povoaram os meus sentidos ao longo dos últimos anos. Mesmo antes de escolher a morte, acho que já sabia que por muito tempo estaria só. Ou melhor, que sempre estive. O que falo sem dor, diga-se de passagem, acho que até com certa sensação de triunfo por ter percebido a tempo que a solidão é inevitável. Porque tudo o que tenho agora é a dor que a roupa provoca sobre a minha pele, dor que somente existe porque ainda tenho nervos e a vaga consciência de estar vivo. E a sensação aguda de toda a minha solidão.
Talvez por isso a decisão de não tentar. Tentar para que? Acabar sonâmbulo em um quarto de hospital, o andar trôpego sobre os braços de outrem, agüentando, dia após dia, noite após noite, os olhares cínicos da piedade alheia, como se eu fosse moribundo em minha própria vida, um morto vivo. Como se estivessem mais vivos do que eu, em suas vidas sem sentido, uma seqüência encardida de dias inúteis, preenchidos com qualquer coisa. E todos os silêncios dos quais fujo há tantos anos, perfilados na porta de um quarto que não é o meu. A piedade alheia é insuportável, como é insuportável o consenso de lucidez que me cerca. No espelho vejo um louco em um mundo insano, um náufrago entre afogados, alguém que luta desesperadamente contra a vida e contra a morte em um mundo sem sentido. Por isto a morte, a morte consentida, a morte por escolha, faça muito mais sentido do que o viver por continuidade. Como a próxima dose, que bebo em sua homenagem antes de escovar os dentes e dormir.