“Alô...alô! Joaquim, sou eu . Olha, eu deixei o Tarquínio tomando conta da tremonha mas estou preocupado, queria que você fosse lá e desse uma olhada. Hein? Não, não ... é que tinha um parafuso solto e ... o que ?, eu sei que quando você saiu estava funcionando direito mas você pode não ter visto o parafuso... claro, claro, mas quando eu passei lá... espera aí... eu vi que tinha um parafuso solto e se aquela merda explodir vai voar farinha pra todo o lado e todo o mundo vai ver... calma, porra, deixa eu falar... o Tarquínio é um pobre coitado, não pode deixar ele sozinho, se der merda a culpa não é dele, vai lá... olha... vai lá e confere tudo... escuta, Joaquim, vai lá e ajuda ele... o que? o que? Não, escuta o que eu tô falando, Joaquim... tá me ouvindo? Alô, alô! Joaquim? Tá me ouvindo? Tá me ouvindo? ... Merda de telefone!”
Desligou.
Eu já estava quase adormecendo, sentado naquela poltrona escorregadia da Mil e Um que chacoalhava pela Rj 116 com a promessa de me deixar no Rio a tempo de tomar um chopinho. Eu, que não tinha nada a ver com aquela encrenca, me via agora sofrendo com o que poderia acontecer com o Tarquínio. Estou cansado de me tornar testemunha involuntária de conversas alheias ouvidas através desse aparelhinho diabólico e, ainda mais, tendo que adivinhar o que se diz o outro lado da linha.
Não quero saber da vida alheia, não quero me envolver em briga de casais, reclamações de contas não pagas, declarações melosas de namorados arrependidos, papos codificados de amor, tão óbvios, que escancaram a montagem de uma infidelidade conjugal. Chega. Não quero ser obrigado a ouvir confissões, delações e broncas de gente que não conheço. Vou reclamar ao governo! Vou pedir ao estado que proíba o uso de celular nos lugares públicos. Ele já o proibiu dentro dos bancos! Pois que o proíba também nos lugares por onde passo. Esse “Estado babá”, como alguém já o chamou, que me humilha quando viajo de avião - quem se lembra de “A tesourinha” do Zuenir Ventura? – esse estado que inventou o kit de primeiros socorros para os automóveis, uma palhaçada que não durou mais de um mês, tempo suficiente para encher as burras de alguns espertalhões, esse estado que encurta o tempo do sinal amarelo nos semáforos para faturar multas obscenas, que deixou a Ponte Rio Niterói criar quatro faixas de rolamento onde só cabem três, que autoriza os provedores de banda larga a fornecer míseros dez por cento da velocidade contratada, que me obriga a trocar todas as tomadas da casa fazendo-me refém dos preços abusivos das lojas que as vendem ... e agora chega. Resistência passiva. Desobediência civil. Viva o Mahatma Gandhi!
E de que é estavam falando, afinal de contas? Que droga é tremonha ? Que farinha é essa? É de trigo? De milho? De mandioca ? É fina? É grossa ? Pra que serve ? Isso só pode ser coisa de bicheiro. Ou será de traficante ? A farinha não seria para “cortar” cocaína? Deus me livre! E se eu for chamado a testemunhar, só porque ouvi a conversa ? Fiquei com medo.
Levantei-me e fingi que ia ao banheiro. Eu só queria era ver a cara do indivíduo que ligara para o Joaquim. Era feio, mal encarado e simulava estar dormindo, certamente para não se deixar trair pelo olhar. Não havia dúvida: tinha cara de traficante. Deveria ser o chefe do Joaquim, autoritário e bruto como só um traficante pode ser. Eu não tinha nada a ver com aquilo mas comecei a sentir pena do Tarquínio. Se a tremonha explodisse ele seria sacrificado. Talvez morresse ou, pior, ficasse aleijado para sempre. Teria família ? Muitos filhos ? Ou seria ele um usuário da própria droga que produzia ? Acho que nunca mais vou viajar nesse ônibus.
Voltei para o meu lugar, carregado de angústia e medos. Adormeci. Só acordei mais tarde, com o barulho da explosão.
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