domingo, 26 de setembro de 2010

Lição de Inglês



A professora era miúda. Curta e magra. Sua voz era meiga e suave, delicada como o seu corpo. Sussurrava poemas de William Blake – “tiger, tiger, burning bright / in the forest of the night ...”  – como quem canta uma canção de ninar.

A professorinha preocupava-se com a minha pronúncia e com a minha saúde. Trabalhando no turno da noite, minha pele havia adquirido um tom metálico fosco, parecido com o da prata já coberta pela pátina do tempo. A fábrica Bangu era o meu segundo emprego, depois da escola. Eu entrava às dez da noite e saía às seis da manhã. No caminho de casa eu parava sempre no mesmo bar e “jantava” dois ovos fritos e uma cerveja. Eu seguia o conselho que me havia sido dado pela professorinha:

--“ Eat many eggs!” , dizia-me sempre, e repetia a frase acenando-me e gritando do portão de sua casa, quando, terminada a aula, eu me afastava. Em sinal de reconhecimento eu me virava e levantava as mãos para o céu. Não sei bem o que aquilo significava mas pelo sorriso que via em seu rostinho magro percebia que ela ficava contente.

No meu jantar das seis da manhã eu sentava sempre numa mesa da calçada. As pessoas que passavam balançavam a cabeça e podia-se ler o que pensavam:

“Pobre coitado, começando a uma hora destas, imagina como estará quando chegar de noite”.

Um dia ela me falou de Deus. Eu, que considerava Deus apenas um amigo de infância, interessei-me, e perguntei onde ficava a sua igreja.

-- We have no church. We pray in the streets.

Passei a venerar a professorinha que rezava nas ruas, sem imagens nem templos.

Na flor da juventude, foi graças aos seus conselhos que sobrevivi por mais de um ano àquele regime de trabalho noturno que subjuga o homem à mais cruel solidão. Não havia passeios. Não havia namoro. Não havia festas. Não havia cinema nem teatro. Não havia sono. Não havia despertar. Não havia nada.

-- “Eat many eggs!”

Só havia a professorinha, dois ovos fritos e uma cerveja casco escuro. Todos os dias.

Luigi





quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Dever de Casa: Escrever

“Escrever” continua atual. Depois que o Severino simulou um ataque de demência por achar que, devido ao que já se publicou e se continua publicando não sobrariam leitores para ele, aparece no Segundo Caderno do “O Globo”, uma coluna de Francisco Bosco com, exatamente, esse título: Escrever.

Logo depois do destempero do Severino, Mônica Noronha tratou desse tema com seriedade explicando como e por que escreve. Debatendo-se entre o prazer da escrita e as obrigações que lhe são impostas pela profissão que exerce, Mônica dá uma importância elevada à contraposição publicações/ leitores, resigna-se por não poder escrever tudo o que gostaria , e encerra o assunto: “Então, que venha o possível”. Decisão sensata.

Na sua coluna Francisco Bosco cita o filósofo Giorgio Agamben: "Escrevemos para nos tornarmos impessoais".  Bosco explica: “Segundo o filósofo, cada sujeito é formado por duas dimensões, uma pessoal, outra impessoal. A pessoal é o Eu, a consciência, a identidade; o que em nós é constituído, sabido, reconhecido. A parte impessoal é o que, “em nós supera e excede”, é o que nos revela “que nós somos mais e menos do que nós mesmos”, é uma “zona de não conhecimento” em nós mesmos”. Depois de estender-se numa longa e detalhada interpretação das palavras do filósofo, Bosco conclui: “Para mim, é por isso que se escreve, ou, ao menos, é por isso que escrevo: para transcender os limites tediosos neuróticos do meu ser”.

Nunca pensei que fosse tão complicado.

Severino Mandacaru, por exemplo, que só ficava neurótico quando faltava cerveja, escrevia a seu modo – não precisava de papel – , cantando na praça de Glória de Goitá:


Eu canto, eu faço verso
Eu canto até mi sguelá
Eu rimo no desafio
Acompanho no ganzá
Eu canto gloza e repente
E galope à beira mar ...


Moço distinto se chegue
Meu canto é pra si escutá
Mostre que tem coração
Ajude um pobre a cantá
Tire do bolso um trocado
E bote no meu borná ...

Severino tinha suas razões. A vida dura na caatinga não lhe permitia maiores elocuções.
Creio que chegou a hora de dizer por que escrevo. E vou ser sincero:

Escrevo para me exibir. Para receber aplausos e vaias. Escrevo no centro de um palco, como um ator. Curvo-me em agradecimentos quando me aplaudem. Cubro o rosto quando me vaiam.

Escrevo para ser lido. Fico alegre quando descubro que alguém me leu. Não são muitos: Um colega aqui, um amigo ali. Um primo, um cunhado, um sobrinho e um neto. E eu mesmo.

Escrevo porque gosto de ler. Como leitor, quero saber o que penso. Se não escrever, não posso ler-me. Leio como qualquer leitor, fora do palco. Quando gosto, rio muito e aplaudo. Quando não gosto, vaio e rasgo tudo.

Escrevo porque vivi. E vivi bem. Não sei inventar histórias. Escrevo o que vivo.

Escrevo ... porque gosto. E tenho papel e lápis.



Luigi Spreafico

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Hoje é o aniversário do Diretor !!!

Madrugada Insólita



Acordei. Eram quatro horas da manhã. Esfreguei os olhos com preguiça. Fiquei sentado na cama, de olhos fechados, e esperei até lembrar onde estava. Levantei-me, enfiei os pés nos chinelos que me acompanham há tantos anos e caminhei até a cozinha. Bebi um copo d’água. Fiz café. Sentei-me na cadeira dura enquanto aspirava o aroma suave do arábica. Fechei os olhos. Perdi a noção do tempo. Tenho que devolver um livro que me emprestaram, não posso esquecer. Preciso alisar o chão de terra onde ponho comida para os passarinhos. Está cheio de rachaduras, os grãos de alpiste afundam, e as pobres aves não conseguem alcançá-los. O bambu que cortei há meses já está seco. Tenho que prepará-lo antes que as chuvas comecem. Já é quase Outubro. Hoje vou fazer o primeiro corte na rúcula que plantei há um mês de uma semente que não poderia ter nascido. Sua validade venceu em Setembro de 2004. Mas nasceu, porque ignorei o seu prazo de validade. Eu também nasci, mas com prazo de validade não revelado. Vou fazer como fiz com a semente. Ignorar o prazo e plantar-me a cada dia. Hoje é 16 de Setembro. Oitenta anos atrás eu vi a luz pela primeira vez. Assim me disseram. 80. Um número formado por três zeros. Um grande e dois pequeninos.

Luigi

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Minha Usaflex Bege


"As pessoas se irritam com aqueles que adotam padrões de vida muito individuais; elas se sentem humilhadas, reduzidas a seres ordinários, com o tratamento extraordinário que eles dispensam a si mesmos." ( F. Nietzsche)



Me mudaram para outra sala, adorei o espaço, os móveis modernos e tinindo de novos. Até comprei dois pares de sapatos de saltos altos e uma a bolsa, que foi cara, para combinar com os dois pares de sapatos. Comecei a usar uns vestidos mais curtos para realçar as minhas pernas, que dizem serem muito bonitas. Até me animei a fazer escova no cabelo, dia sim, dia não. Ouvi um elogio bem quente de um colega que sempre me achou invisível.

Acontece que antes trabalhava sozinha num rabicho de sala, e com a mudança tive que dividir meu espaço com ela. Mal a conheço, tomara que nossa convivência dê certo. Gosto de pessoas mais descoladas e ela é muito certinha. Sua mesa é arrumada, com todas as canetas e lápis dispostos, cuidadosamente, dentro do porta-lápis. Os poucos papéis são lisinhos e sem marcas de manuseio, impecavelmente, dispostos num porta papéis. Um tremendo contraste com a bagunça da minha mesa. Isso me incomoda um pouco.

A primeira vez que a vi abrindo o seu laptop, reparei que está novinho em folha, apesar de ter o mesmo tempo que o meu. Quando ela começou a teclar, seus dedos, tipo delicados, mal tocaram nas teclas. Atendeu ao telefone, silenciosamente, e eu sequer ouvi se falava com um homem ou com uma mulher. Gente assim me dá nos nervos.

Ganhamos bombons do chefe, fiquei esgueirando o jeito entediante dela morder devagar, mastigar, calmamente, de boca fechada. Eu coloquei aquela delícia toda na boca de uma vez. Não vou agüentar conviver o dia inteiro com alguém que come assim.

Ela fala baixo, pronuncia as frases com clareza. Nunca dá uma gargalhada, apenas sorri. Claro que não tem a minha alegria esfuziante. Quando chega de manhã,me dá um bom dia cordial e senta-se na cadeira com uma postura invejável. Não relaxa. Esta sala está ficando cada vez mais apertada para nós duas.


Há alguns dias não faço escova nos cabelos e voltei a usar minha sandália usaflex bege . Estou vendo um jeito de sair desta sala. Me sinto enjaulada, com ela apontando, dia após dia, os meus excessos, como se fossem defeitos. Vou acabar me aborrecendo e lhe dizendo uns desaforos. Afinal quem ela pensa que é com esse ar superior ?

Agora mesmo, só para me irritar, guardou os óculos, envoltos numa flanela, dentro de um porta óculos acolchoado.

domingo, 5 de setembro de 2010

As Feridas da Infância II - A Patriotada



“A Pátria é a família amplificada” disse Ruy Barbosa.
“O sentimento que divide, inimiza, retalia, detrai, amaldiçoa, persegue, não será jamais o da pátria. A Pátria é a família amplificada.”

A Escola Técnica de Indústria Química e Têxtil foi a primeira escola criada no Brasil para o ensino da tecnologia têxtil. Destinava-se a suprir pessoal técnico para o setor substituindo técnicos e engenheiros trazidos do exterior. A Confederação Nacional da Indústria dera muita importância a esse problema e escolhera o Senai para implementar o projeto. Num prédio enorme instalou oficinas e laboratórios com os equipamentos mais modernos disponíveis na época. Instalou também um parque esportivo, cozinhas, lavanderia e um internato, posto que os alunos vinham de todos os Estados do Brasil e muitos do exterior. A direção foi entregue ao Prof. Mario Souto Lyra, engenheiro que se havia especializado no Instituo Têxtil da Universidade da Carolina do Norte.
O regime era severo: oito horas de aula por dia e mais uma hora de estudo orientado, obrigatório, à noite. Aos sábados, atividades culturais.

Na primeira semana de aulas o Diretor reuniu os alunos para um anúncio importante: o aluno que se classificasse em primeiro lugar durante todo o curso seria contemplado com uma bolsa de estudos. Faria o “Master in Science”, de quatro anos, na Carolina do Norte. Eu vinha de Pernambuco, para onde tinha ido no começo da adolescência e havia completado, com muito sacrifício, o curso secundário. Continuar os estudos depois do curso técnico só seria possível, para mim, se eu conquistasse aquela bolsa. Classifiquei-me em primeiro lugar.

Pra chamar a atenção sobre a Escola, a Confederação Nacional da Indústria ofereceu um jantar ao empresariado têxtil, onde foi anunciada a concessão da bolsa. Entre as autoridades presentes estavam Euvaldo Lodi, presidente da Confederação, e D. Jaime Câmara, Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro. Presente estava também o Professor Ivo A. Cauduro Piccoli, que havia sido nosso professor de física durante todo o curso, muito eficiente e simpático, que se tornara grande amigo dos alunos. Ele chefiava o departamento da Confederação que administrava as bolsas de estudo.

Terminado o jantar, parabéns pra cá, parabéns pra lá, salamaleques pra todo o lado, Piccoli me chama a um lado e diz:
-- Venha amanhã ao meu escritório e traga seus documentos. Vamos tratar do seu embarque.
Fui pontual. Depois de um longo prólogo no qual discorreu sobre o curso nos Estados Unidos, o professor pergunta:
-- Trouxe os documentos?
Entrego-lhe os documentos. Ele olha a carteira de identidade e solta um urro:
-- Italiano? Você é italiano?
-- Sou, sim. Todo o mundo sabe disso lá na escola.
-- Não é possível! Todo mundo chama você de “Pernambuco”, como é que você pode ser italiano?
-- Pois sou. Estou pedindo a naturalização, mas a papelada ...
-- Eu não posso mandar um italiano representar o Brasil numa escola americana.
-- Mas, me disseram que a bolsa era um premio para o primeiro colocado e não ...
-- Não é possível, não é possível!

Meu mundo desabava. Eu não sentia o chão debaixo dos pés. A vista se turvou.
Vi a cara do meu pai, a quem eu havia prometido continuar os estudos por minha conta. O professor continuava falando mas eu não ouvia mais nada. De cabeça baixa afastei-me, de costas, até encontrar a porta. Eu tinha vinte anos.
Completei meus estudos aos quarenta e sete, casado e com dois filhos grandes.

“ A Pátria é a família amplificada” disse Ruy Barbosa.