UM BUQUÊ PARA MINHA MÃE
As feridas emocionais que sofremos na infância e na adolescência deixam marcas indeléveis. Sei que de nada serve arrastá-las pelo resto da vida. Nem mesmo servem de exemplo para coisa alguma. Atravessei toda a minha vida profissional sem dar-lhes a menor importância, totalmente esquecidas. Mas não sei por que agora voltam-me à memória fazendo-me sofrer, numa espécie de autoflagelação. Talvez pudesse dizer que servem de alerta aos jovens para que se acautelem contra falsos protetores. E aí me perguntariam: e como posso fazer isso?
Quando tinha oito anos a minha casa ficava exatamente no pico do morro da Vila Maria. De um lado, a partir do limite do meu quintal, o chão desaparecia e se podia contemplar a várzea do rio Tiete e o maciço dos edifícios no centro da cidade. Do lado oposto, ruas estreitas e vielas serpenteavam pela encosta até a base da colina onde começava o brejo. O brejo era um pântano que abrigava um pequeno lago de solo arenoso e firme, onde se podia andar a vau. Em certos dias do ano, devia ser no outono, uma neblina pesada caia sobre o lago criando uma atmosfera de mistério onde me parecia ver duendes fazendo troça.
Eu escapulia de casa, muitas vezes sozinho, e corria até lá em busca de aventuras: brincar com uma rã, perseguir um lambari, comer um araçá ou colher alguns “botões” com os quais minha mãe decorava a mesa de refeições que ficava na cozinha de terra batida. Os “botões” eram uma espécie de junco, uma simples haste longa e rígida que terminava com um botão, uma inflorescência compacta, de superfície lisa e aveludada e diâmetro não maior do que o dedo médio. De cor, eram brancos. Com os tocos de giz colorido que recolhíamos no quadro negro da escola pintávamos os juncos formando, assim, um buquê de flores. Esse era o ornamento mais comuns em nossas casas.
Certa manhã, vendo que a mesa da cozinha estava desprovida de colorido, parti para o brejo. Não havia ninguém. Eu já havia recolhido um bom feixe de juncos quando apareceu um rapaz enorme, já homem feito.
-- Olá! O que é que você está fazendo?
Expliquei-lhe o que fazia, espantado por ver um homem daquele tamanho que não sabia pintar juncos.
-- Eu também vou catar.
Tirou os sapatos, arregaçou as calças e atirou-se à água. Voltou com meia dúzia de hastes e depositou-as ao lado das minhas. Repetiu a operação com mais três ou quatro hastes e disse:
-- Vamos colocar tudo junto. Depois a gente divide ao meio.
Eu percebi a trapaça mas não podia fazer nada. Continuei empilhando juncos. O meninão ficou rodando de um lado para outro assobiando, apontando para os passarinhos, jogando pedrinhas no lago. Quando o feixe já estava bem grande calçou os sapatos, sobraçou o feixe, e foi-se embora assobiando. Não disse tchau.
Fiquei sentado, a cabeça escondida entre os joelhos, tentando esconder as lágrimas de mim mesmo. Eu não entendia. E até hoje não entendo.
Luigi
As feridas emocionais que sofremos na infância e na adolescência deixam marcas indeléveis. Sei que de nada serve arrastá-las pelo resto da vida. Nem mesmo servem de exemplo para coisa alguma. Atravessei toda a minha vida profissional sem dar-lhes a menor importância, totalmente esquecidas. Mas não sei por que agora voltam-me à memória fazendo-me sofrer, numa espécie de autoflagelação. Talvez pudesse dizer que servem de alerta aos jovens para que se acautelem contra falsos protetores. E aí me perguntariam: e como posso fazer isso?
Quando tinha oito anos a minha casa ficava exatamente no pico do morro da Vila Maria. De um lado, a partir do limite do meu quintal, o chão desaparecia e se podia contemplar a várzea do rio Tiete e o maciço dos edifícios no centro da cidade. Do lado oposto, ruas estreitas e vielas serpenteavam pela encosta até a base da colina onde começava o brejo. O brejo era um pântano que abrigava um pequeno lago de solo arenoso e firme, onde se podia andar a vau. Em certos dias do ano, devia ser no outono, uma neblina pesada caia sobre o lago criando uma atmosfera de mistério onde me parecia ver duendes fazendo troça.
Eu escapulia de casa, muitas vezes sozinho, e corria até lá em busca de aventuras: brincar com uma rã, perseguir um lambari, comer um araçá ou colher alguns “botões” com os quais minha mãe decorava a mesa de refeições que ficava na cozinha de terra batida. Os “botões” eram uma espécie de junco, uma simples haste longa e rígida que terminava com um botão, uma inflorescência compacta, de superfície lisa e aveludada e diâmetro não maior do que o dedo médio. De cor, eram brancos. Com os tocos de giz colorido que recolhíamos no quadro negro da escola pintávamos os juncos formando, assim, um buquê de flores. Esse era o ornamento mais comuns em nossas casas.
Certa manhã, vendo que a mesa da cozinha estava desprovida de colorido, parti para o brejo. Não havia ninguém. Eu já havia recolhido um bom feixe de juncos quando apareceu um rapaz enorme, já homem feito.
-- Olá! O que é que você está fazendo?
Expliquei-lhe o que fazia, espantado por ver um homem daquele tamanho que não sabia pintar juncos.
-- Eu também vou catar.
Tirou os sapatos, arregaçou as calças e atirou-se à água. Voltou com meia dúzia de hastes e depositou-as ao lado das minhas. Repetiu a operação com mais três ou quatro hastes e disse:
-- Vamos colocar tudo junto. Depois a gente divide ao meio.
Eu percebi a trapaça mas não podia fazer nada. Continuei empilhando juncos. O meninão ficou rodando de um lado para outro assobiando, apontando para os passarinhos, jogando pedrinhas no lago. Quando o feixe já estava bem grande calçou os sapatos, sobraçou o feixe, e foi-se embora assobiando. Não disse tchau.
Fiquei sentado, a cabeça escondida entre os joelhos, tentando esconder as lágrimas de mim mesmo. Eu não entendia. E até hoje não entendo.
Luigi
Luigi,
ResponderExcluirque bom que você escreveu isto! Bonito toda vida. Só tem marcas quem tem coração! Achei lindo vc levar flores para enfeitar a casa da sua mãe. Gosto de mães, que gostam de flores em casa e gosto de filhos que levam flores para suas mães! Também achei bastante pertinente a indagação sobre os protetores! Parabéns Paçoca
Obaaa! Fui a primeira a comentar o resto comeu mosca!
O que é vau?
ResponderExcluirPaçoca, explico:
ResponderExcluirVocê já ouviu a expressão "nesse ponto o rio dá pé"? (Pode ser também na praia ou na piscina)Significa que a gente pode andar ali, com os pés no chão, sem se afogar. Pois "andar a vau" é quase a mesma coisa: caminhar dentro dagua com o nivel pelos joelhos, bunda ou cintura. Pelo menos isto é o que eu me lembro do tempo de menino. Se non è vero...
Luigi
Caro Mestre,
ResponderExcluirAs lembranças da infância são as que mais gosto de inventar em cima. Aquelas em que um espertinho sempre se dava bem sobre um certinho, então são as minhas preferidas.
Sei que não é o seu caso, o mestre preza a fidedignidade da memória, mas amei o texto.
Ressalva apenas para o último parágragro, que não sei se gostei, a meu ver roubou o lirismo do conto, apesar de concordar com a proposição.
Em literatura tem coisas que sabermos, concordamos, mas não precisamos explicitar. Já vem implícito na atmofesra da trama.
Beijos pensativos,
Paçoca,
ResponderExcluirNão comi mosca não, comi jujuba...rs,rs
Amiga, gostei muito do seu comentário! Comentário de escritora!
ResponderExcluirClaudia
ResponderExcluirReli o texto e vi que você tem razão. O último parágrafo é simplesmente piegas. Vou mudar. Obrigado!
Seu dedicado mestrando, Luigi