Claudia Bontempo lia, compenetrada e solene, sua crônica semanal. Eu ouvia, atento, como os demais colegas, preparado para mais um dos seus textos comoventes como “Segredo Bem Guardado” e tantos outros que tocam fundo na alma da gente. Sua voz se fazia dramática quando sibilou:
-- ... nos toscos fios ...
A sonoridade da frase levou-me às gargalhadas. Não sei explicar por que. A colega ainda esboçou uma explicação mas eu não conseguia parar de rir.
Indignada, Claudia interrompeu a leitura, jogou os papeis sobre a mesa e trancou-se num mutismo impenetrável. Por mais que eu implorasse recusou-se a continuar a leitura. Nunca mais voltou ao assunto e eu fiquei sem saber do que se tratava nem que fios eram aqueles. Fiquei com sentimento de culpa que me conduziu a um pensamento atroz. Eu podia ter frustrado, naquele momento, a criação de mais uma obra prima da Claudia Bontempo.
Meio sem jeito, e com a intenção de penitenciar-me, resolvi fazer graça escrevendo um poeminha bobo que chamei de “Nos Toscos Fios”. Não deu certo e eu continuei carpindo a minha culpa.
Como a dor continuou insuportável, fui buscar nos escaninhos da memória alguma coisa que me ligasse a fios e com eles teci esta crônica que a ela dedico na esperança de obter a sua clemência. E antecipo um apelo: Releve meus erros de português. Sem eles eu não conseguiria escrever nada.
URDUME, TRAMA E TRAMÓIAS
Precisávamos de fios. Muitos fios. Fios de lã. Fios crus de pura lã penteada. Com eles produziríamos o tecido que nos iria projetar na história da industria têxtil brasileira. Éramos jovens e sonhadores. Estávamos no último ano do curso técnico da industria têxtil, o primeiro a ser criado no Brasil e seriamos a primeira turma a ser formada. Discutia-se a festa de formatura, que seria realizada nos salões do Fluminense, àquela época um clube aristocrático. Os concluintes filhos de empresários queriam que o traje fosse smoking. Os perebentos de Sergipe, Alagoas e Pernambuco, entre os quais o abaixo assinado, se opunham.
Reuni a turma e fiz uma proposta: Vamos tecer o nosso próprio pano e mandamos fazer o terno. Temos o tear mais moderno do mundo para tecidos de lã. Faremos uma gabardine perfeita e a tingiremos de azul marinho, a cor da moda de todos os executivos. Só precisamos de fios. Há dois lanifícios no Estado. Tentarei sensibilizar um empresário e talvez consiga que ele patrocine a primeira turma de técnicos formada no Brasil. Afinal, é do interesse do setor. Talvez os fios sejam doados. Proposta aprovada.
Marquei entrevista com um gerente do lanifício que deu uma risadinha quando falei em patrocínio mas concordou em vender os fios. Discutimos o negócio: especificações, quantidade, preço, etc. Negócio fechado. O gerente me encaminhou a um magarefe para acertar a entrega.
Os fios que se destinam às tecelagens são acondicionados em bobinas cônicas que têm como suporte um tubo de papelão rígido. O formato em forma de tronco de cone visa a facilitar o desenrolamento do fio nas operações posteriores. O peso da bobina cheia varia conforme o fio e naquele caso era de 800 gramas. O tubete de papelão pesava 40 gramas. Quando fui retirar os fios, o epiltrafa entregou-me bobinas parcialmente usadas que continham, se tanto, 200 gramas. A fraude era dupla: 1. Tratava-se de bobinas descartadas porque arrebentavam demais durante o processamento; 2. A desproporção entre o peso do tubete e o do fio era evidente; nem precisava fazer cálculos para ver que estávamos comprando papelão a preço de fio. Quanto às rupturas dos fios eu nada podia fazer já que se tratava de uma hipótese, apesar das evidências. Mas, quanto ao peso dos fios, pedi que fosse descontado o peso dos tubetes pois eles representavam 20 por cento
do peso do fio contra 5 por cento no caso das bobinas cheias.
A discussão foi longa e inútil. Era aquilo ou nada. Saí com os meus fios, furioso e humilhado. O resultado não foi outro. Os fios partiam à toda hora. O trabalho era penoso. Revezamo-nos dia e noite no tear. Quando alcançamos a metragem mínima necessária ainda sobravam muitas bobinas, com uma camada ínfima de fio. Juntei tudo e parti para a fábrica a fim de devolve-las. Levei comigo quatro colegas escolhidos por peso e tamanho pois sabia que dificilmente seriam aceitas. Fui atendido pelo mesmo sabujo. Não foi preciso discutir muito para que aceitasse a devolução. Só que:
-- Está bem, vou pesar o fio, só que tenho que descontar os tubetes de papelão.
Os quatro colegas circundaram o safado e não foi preciso dizer nada para fazê-lo desistir da idéia. E, aí sim, vendi o meu papelão a preço de fio.
Meu querido Mestre,
ResponderExcluirAs vezes é preciso errar para acertar, e nada como um grande amigo para nos fazer reconhecer nossos erros.
O texto estava mesmo uma droga, mas valeu pela boas gargalhadas que demos e pela cumplicidade da expressão " toscos fios" que unirá o grupo para sempre.
De certa forma isso também é literatura.
A propósito, gostei do seu texto, apenas acho que como sempre, o mestre explica demais.
Claudia Bontempo
Concordo com a Bontempo. O texto vinha ótimo e, de repente, apareceu uma linguagem técnica que quebrou completamente o rítimo.
ResponderExcluirA propósito, prefiro quendo você escreve prosa e assina em baixo, pelo menos não fico pagando mico e ganhando rugas à toa, seu Severino. Me aguarde!
beijo carinhoso
Monica
Mônica,
ResponderExcluirvocê não paga micos. Você luta bravamente pelos seus ideais com essa figura imponente de Joana D'Arc que você tem.
Luigi