Nos meses de outubro e novembro de 2009 um grupo de malucos se encontrou em uma oficina de crônicas na Estação das Letras, sob a batuta do mestre Felipe Pena. O prazer de estarmos juntos foi tão grande que, ao fim do curso, entre chopes e batatas fritas, resolvemos prosseguir, mesmo sem saber onde isso vai dar. De lá para cá nos encontrando semanalmente para ler textos, nossos ou não, discutir literatura e falar da vida... E claro, beber alguma coisa, que ninguém é de ferro.
sexta-feira, 30 de abril de 2010
O Filho da Professora
Claudia Bontempo
Ela era professora de uma escola pública de um subúrbio do Rio de Janeiro. Devia ter uns vinte e cinco anos, mas vestia-se com roupas circunspectas , talvez para dar menos leveza ao ofício de ensinar. Era severa e pouco sorria. No entanto, como eu conseguia ver a juventude encarcerada nas saias pregueadas abaixo do joelho, nas blusas de balon beges e por detrás de óculos de armações pesadas que usava, me afeiçoei a ela desde o primeiro dia de aula.
Munida com minha pseudo sabedoria sobre sedução de adultos, não media esforços para que gostasse de mim. Sentava-me na primeira carteira, ao lado de sua mesa; com todas as tarefas de casa cumpridas, apressava-me a responder primeiro as perguntas que fazia à turma, estava sempre pronta para apagar o quadro negro, a fazer ponta nos seus lápis, a carregar a pesada pasta que levava todos os dias. Mas algo em mim desagradava a professora, e por mais que me esforçasse, não conseguia que me olhasse com a bondade e o afeto de que eu precisava.
Aos poucos, apesar de todo meu empenho, percebi que ela definitivamente não simpatizava comigo. Quando era complacente, preferia ser com as meninas, cujas mães iam para a escola bajulá-la, carregando pratinhos de bolinhos e empadinhas, ou raminhos de flores do jardim que mantinham em casa. Sempre impecavelmente vestidas e penteadas, chegavam sorridentes e cheirando a amor materno.
Eu não tinha mãe. Quer dizer, tinha sim. Mas a minha trabalhava fora, e como eu que tinha 7 anos de idade, achava que nenhuma mãe trabalhava fora. Exceto a minha, e as professoras que ,certamente, tinham o aval de Deus para deixarem seus filhos aos cuidados de outros enquanto cumpriam o divino trabalho de ensinar. E eu carregava comigo tanto ressentimento, por chegar desgrenhada e não ter ninguém para ajeitar meu cabelo, por faltar-me um botão de camisa e não ter quem o pregasse, antes que a professora desse por falta, e pela solidão de não ter uma mão para segurar na minha até a porta da escola . Sentia inveja, de independer de mim chamar a sua atenção, enquanto ela distribuía afetos, ainda que comedida, às outras garotas, apenas pelo respaldo materno.
Mas um dia, o filho da professora foi à escola, à fim de ver um ioiô que o pai de uma das alunas trouxera dos Estados Unidos, e que era a grande novidade do momento. Quando o brinquedo rolava no ar, luzes coloridas acendiam e apagavam. Foi um alvoroço danado na sala de aula. Colocaram o menino sobre um banco com o ioiô na mão; ao mesmo tempo, todas as meninas batiam palminhas de falsidade, a adulá-lo, enquanto ele dava gritinhos de alegria. E de repente, a professora tinha largado o ofício para ser mãe, e não se continha e ria de adoração, por aquele instante de felicidade que o seu filho experimentava.
Foi então que resolvi me vingar. Fui a única a ficar sentada no fundo da sala a escrever coisa nenhuma no caderno, para que não se esquecesse do trabalho que a fazia deixar o filho aos cuidados de outro em casa, sozinho. Quis que lhe pesasse a culpa, ao mostrar o quanto o seu filho padecia na mão de alguma professora como ela.
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Querida Cláudia,
ResponderExcluirem tudo o que você escreve deixa transparecer o ser humano lindo que você é.Parabéns! Gostei em especial de duas frases: "cheirando a amor materno" e "palminhas de falsidade" Beijos e palminhas sinceras!
Memórias! Como doem!
ResponderExcluirPrimeiro a afeição pela professora, o esforço para mostrar-se competente, e a espera pelo reconhecimento e pela reciprocidade do afeto. Depois o sentimento de rejeição, aquela mágoa por sentir-se abandonado, desconsiderado, ignorado.
Finalmente a vingança, sentimento que não enobrece ninguém, mas difícil de superar, necessário para a própria sobrevivência, principalmente numa criança que se vê injustiçada – ou ignorada – , na estúpida competição com bajuladores.
Em poucas palavras sua crônica descreve todo um processo de formação da personalidade onde entram a frustração, os desencantos, os complexos e tudo aquilo que marca a gente pelo resto da vida.
Um lindo texto e uma grande aula. Parabéns!
Pena ser a última a comentar... (cdê o Delano??)
ResponderExcluirGosto especialmente do despudor com que você descreve sentimentos nada fáceis de serem admitidos.
Interessante seria reencontrar as alunas filhas das mães onipresentes. E fico pensando se meus filhos conseguirão um dia olhar para minhas trapalhadas como mãe com tanto afeto.
beijo
M. Noronha