domingo, 8 de agosto de 2010

ESCREVER


-- Vou parar de escrever.
-- Por que?
-- Estou enlouquecendo.
-- Mas você não precisa parar de escrever só porque está ficando louco. Você não lê jornal? Não viu como tem louco escrevendo? Preste atenção ao que dizem certos políticos. E os economistas, desvairados, quando analisam as crises mundiais, os superávits primários, a distribuição perversa da renda, a deterioração das relações de troca, o corporativismo nas relações intersexuais dos povos nômades do baixo Cáucaso e sua influência na taxa de formação do capital, etc.,
Todos doidos! Eles conseguem comprovar duas teses diametralmente opostas usando o mesmo argumento. E os nossos legisladores, baseados nessas informações, para nos proteger, danam-se a tacar impostos e aumentar juros. Você, pelo menos, não prejudica ninguém. Escreva loucuras. Ninguém notará.
-- Mas essa é justamente a minha preocupação. Quem vai ler? Tirando meia dúzia de amigos ...
-- Não se preocupe com isso. Sempre haverá alguém mais descuidado disposto a ler o que você escreve.
-- Acho que você não entendeu. Não duvido que pessoas abnegadas se disponham a ler o que escrevo. O problema é fazer com que o livro chegue a elas. Não há pessoas suficientes para todos os livros que são publicados. Eu lhe garanto: tem mais livro do que gente!
-- Como assim, tem mais livro do que gente?
-- Você já reparou quantas livrarias existem espalhadas pelo mundo? Comece pelo Rio de Janeiro. Quantas? E Buenos Aires, aqui visinho, que tem três vezes mais do que o Rio? Você conhece as livrarias de Nova York? São gigantescas!
E Paris? E Londres, Frankfurt, Madri, Milão? Tókio tem uma livraria que tem sete andares com a área de um quarteirão! Não, não, isso dá pra enlouquecer!
São livros e mais livros que vão se acumulando desde Gutemberg, nas livrarias, nos armazéns, nas bibliotecas, nos arquivos, nos mosteiros, nos museus e até na minha casa. Não há gente para tanto livro. Só de pensar nisso eu enlouqueço.
-- Tenha calma. Acho que ainda há uma possibilidade de interromper esse seu processo de decomposição cerebral. Em primeiro lugar você está se precipitando. Se você não tem dados estatísticos confiáveis você não pode concluir que não há leitores suficientes. E aí a coisa se complica porque você teria que fazer um corte no tempo, calcular o número de livros em estoque nas livrarias nessa data, incluir as bibliotecas públicas, as particulares, os arquivos e sei lá mais o que, e ainda assim teria que fazer uma abstração deixando fora todo o material publicado em forma de jornal, revistas, boletins e sem falar em e-books, blogs e tudo o que circula no espaço sideral ...
-- Pois é. Essa é a minha intenção. E eu comecei dando um passo bem modesto, analisando um microcosmo que me permitisse montar um modelo a ser aplicado no resto do mundo.
-- De que maneira?
-- Pelo Rio de Janeiro. Com uma só livraria.
-- Como?
-- Você conhece a Leonardo Da Vinci? Sabe quantos livros tem lá dentro?
-- Não, por que? Você sabe?
-- Eu contei.
-- Impossível, você está maluco. Ninguém conseguiria fazer isso. Você perguntou pra Dona Giovanna?
-- Não. Não me atrevi, ela poderia desconfiar. Mas eu calculei. São 86.400 livros, com pequena margem de erro.
-- Nem vou lhe perguntar como você conseguiu fazer isso.
-- Veja bem, vou simplificar: a livraria tem 5 salas com estantes que vão até o teto. Cada estante é dividida em compartimentos, todos iguais, graças ao bom senso do marceneiro. Achar o total de compartimentos foi fácil. Contei o numero de livros que existe em cada compartimento e chequei, por amostragem, com alguns outros, pois nem todos os livros têm a mesma espessura. Assim cheguei a um valor médio representativo, com boa margem de segurança, de todo o conjunto. Os compartimentos que armazenam dicionários e livros de arte, que são notadamente mais grossos, foram tratados em separado e receberam um coeficiente de correção. No piso da loja também há livros, distribuídos em gôndolas, cuja quantidade pode ser facilmente calculada tomando-se o número de livros por metro quadrado. O meu passo é bastante regular e com ele posso medir qualquer distancia com erro menor do que dois por cento. Determinada a área de cada sala tem-se o total de livros, com o cuidado, naturalmente, de descontar o espaço ocupado pelas vias de acesso, escadas, mesas e cadeiras da administração, coletores de lixo, e onde ...
-- Pára, pára! Vou lhe dar o telefone de um médico.
-- Que médico?
-- È o psiquiatra que me curou quando eu parei de escrever. Não deixe de procurá-lo assim que você acabar essa cerveja.
Severino Mandacaru

10 comentários:

  1. Caro Mestre Mandacaru,
    Sempre fico na dúvida se os seus textos são ficção ou se realmente aconteceram com a riqueza de detalhes que descreveu ( a convivência nos leva a determinadas indagações). Mas isso não tem a menor relevância para o seu valor literário, apenas satisfaria uma curiosidade besta desta sua admiradora.
    Venho sofrendo da síndrome da tela em branco, talvez não pela quantidade de livros publicados pelo mundo afora, mas pela quantidade de donos da verdade que os escrevem. O mestre já reparou como as pessoas tendem a endeusar e elevar a celebridades os escritores, ainda que sejam indivíduos medíocres? Ando enjoada de tanta escuridão, e tenho refletido se até para se escrever tristemente não é necessário enxergar ao menos um ponto de luz.
    (Divagações de tanto ler os debates da FLIP, não me leve muito a sério).

    Gostei do seu texto, achei forma e conteúdo diferente do que o mestre costuma escrever. Novos ares literários ?

    Beijos irritados de uma segunda-feira irritante.

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  2. Caros colegas
    Fiquei estarrecido!Eu vinha cozinhando esta crônica ha algum tempo,fiz varias visitas à livraria Da Vinci, mas nunca lhe dei prioridade. Ontem,domingo, cheguei do Rio aí pelas quatro da tarde. Como era tarde demais para meter-me no bambuzal resolvi terminar a crônica. Perdi muito tempo pois queria ampliar a pesquisa sobre a quantidade de livrarias e o escambau mas a paranoia do personagem acabou me contagiando. Resovi fechar e quando fiz a postagem já eram 22:36. Confiram aí em cima.
    Hoje,segunda,fui buscar o meu jornal (Globo) às 6 horas como de costume. Depois de uma rápida olhada na primeira página como faço sempre, abri o encarte "Digital", coisa que não faço nunca. Na página 7 encontro a manchete:
    "MILHÕES DE MOTIVOS PARA LEITURA - O Google contou quantos livros existem espalhados pelo planeta"
    Ráios me partam!
    Luigi

    Querida colega Claudia:
    O seu comentário perfurou uma bolha que vinha crescendo no meu cérebro e eu não podia extirpar por medo de parecer presunçoso. Mas o tema que você aborda merece uma discussão longa. Poderia ser assunto para uma próxima reunião?
    Luigi

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  3. Claudia
    Você tem dúvidas sobre se o que escrevo é pura ficção, com requinte de detalhes ou pura realidade. Sinto-me honrado com o seu questionamento pois leva-me a crer que estou brincando de escritor “à serio”. Não posso furtar-me a uma explicação por mais bisonha que ela se apresente.
    Eu não sei inventar histórias, não sei criar ficção. Todas as minhas histórias já estão escritas, o meu trabalho é verbalizá-las e passá-las para o papel. Na presente crônica o diálogo é fictício, nota-se. Mas na raiz do diálogo está uma antiga obsessão minha sobre a quantidade enorme de material que se publica e a impossibilidade de ler uma parte mesmo infinitesimal daquilo tudo. Este conflito agravou-se quando, tempos atrás, por incentivo do nosso - esse sim - querido mestre, decidimos publicar um livro. Eu aderi sem muita convicção, só por solidariedade. Dias atrás, mais por curiosidade do que por interesse científico pois sabia que isso não levaria a lugar algum, resolvi descobrir quantos livros conteria uma simples livraria. Claro, poderia ter perguntado a qualquer livreiro mas assim perderia a graça. Escolhi a Livraria Leonardo Da Vinci por ser uma das maiores do Rio. E contei os livros. Claro que não foi um a um, e a metodologia adotada está explicada na própria crônica, propositadamente de modo atabalhoado para dar ritmo ao texto. Na verdade usei dois métodos para servirem de “cross-checking” e encontrei dois valores bastante diversos: 54.108 e 86.400. Como o primeiro método tinha sido muito rudimentar - eu havia estimado a quantidade de livros por unidade de área a olho - optei pelo segundo valor, onde o número de livros foi efetivamente contado, um a um.
    Voltando ao âmago das suas dúvidas, se você investigar as poucas coisas que escrevi como ficção pura vai descobrir que sempre existiu uma fonte concreta, física, como fonte de inspiração. Para dar um exemplo, em “Didelphis Marsupialis o gambá freqüentava a minha casa, eu apenas o fiz portador das minhas inquietações com o problema dos agrotóxicos. Em “De Gente e de Bichos” tanto o cão como o armazém e o bêbedo existiam quando eu tinha oito anos. Eu apenas os descrevi com os olhos de hoje.
    Sei que esta arenga tornou-se enfadonha e apresso-me a reconhecê-lo. Mas se queremos aprender a escrever, além de ler, precisamos discutir e você me deu uma boa oportunidade para isso. Fico-lhe grato. Poderíamos dar ênfase a este tipo de discussão em nossas reuniões.
    Amo, Ato, Obdo,
    Luigi

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  4. Meu caro mestre,

    Sem dúvida o processo de escrita para cada escritor é sempre muito particular.

    Quanto a veracidade ou não da história, como já mencionei, foi apenas uma aguda curiosidade que me levou a indagar se você realmente tinha ido à Leonardo para tentar contar os livros que ali estão. Agora que já sei que foi mesmo, fico aqui com meus botões a sorrir, imaginando-o cumprindo a tarefa, acompanhado de um de seus fiéis chapéus.
    Permita-me dizer que o mestre, com suas idiossincrasias, daria não apenas um conto, mas uma série de contos.
    Pena que me falte talento para tal !

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  5. Prezados Colegas,
    boa discussão para uma segunda-feira irritante (a minha foi enfadonha!)
    Querida Cláudia, suas aflições são aflições de escritora, sua síndrome também!
    Luigi, gostei muito do texto. Tem muito de você ali! A forma com diálogos também foi usada no Didelphis e fica bem leve!
    Paçoca não sabe o que é arenga!
    Beijos

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  6. Está aí um ótimo exercicío: Transformar nosso amigo de chapeu num conto. No meu ele jamais adiaria uma reunião! O Quê? Assumir um compromisso às sextas feiras sem nos consultar? IMPERDOÀVEL.

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  7. Ninguém deu bola para o fato de eu ter me antecipado ao Google - por apenas algumas horas - na tarefa de investigar o número de livros que existe no mundo. Vocês não perceberam que se eu me atrazo essas poucas horas seria acusado de plágio? Ráios me partam!

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  8. Paçoca,
    "arenga" é um discurso enfadonho, gostou?
    E "amo, ato, obdo", você sabe o que é?

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  9. Mestre,
    Eu percebi que você é um visionário faz tempo, mas ao que tudo indica vc ainda se surpreende com isto!
    Sinceramente? Eu sabia o que era amos atos obdos (nem sei se era assim) acontece que nem mais isso eu sei.

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  10. Paçoca,

    Você nunca ouviu a expressão " para de ficar arengando", quando criança ?
    Eu ouvia sempre quando reclamava de alguma coisa .....e como eu reclamava.

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