quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Francisco! Ôooh, Francisco!

Francisco seguiu o pai. Sem maiores estudos tornou-se um grande mecânico ferramenteiro. Partindo do nada instalou-se em Santo Amaro, São Paulo. Construiu uma oficina onde produzia peças para a indústria automotiva. No tempo vago projetava componentes para outros setores como eletrodomésticos, caldeiraria e implementos agrícolas. Teve dois filhos: um casal.
O filho, tendo estudado mecânica de precisão, o acompanhou na profissão e com a aposentadoria do pai transformou a oficina em uma fábrica de máquinas e acessórios para estamparia de silk-screen.

Francisco, aposentado, conseguiu como tantos outros românticos sentimentais o “seu sítio, seu paraízo”. Localizava-se próximo a Ibiúna, a mil e quinhentos metros de altitude, o que me provocava uma certa inveja pois ali era possível dormir acalentado pelo suave perfume da macela.
Numa viagem ao sítio ele foi flagrado pela polícia federal dirigindo sem óculos. Embora a carteira de habilitação o obrigasse a isso, como o grau era pequeno, Francisco sentia-se mais confortável dirigindo sem os óculos e os mantinha ao alcance da mão, no banco ao lado. Desceu do carro com os óculos na mão.

-- O senhor está dirigindo sem óculos.
-- Desculpe, mas eu estou dirigindo com os óculos.
-- Mas o senhor está com eles na mão.
-- Certo. Acabei de tirá-los. È que minha mãe me ensinou que sempre se deve tirar os óculos quando se fala com uma autoridade.

Entre as coisas importantes a que Francisco se dedicou, antes que o sítio se transformasse em “seu sítio seu prejuízo”, estava a apicultura. E, para fazê-la bem não poderia fazê-la que não fosse migratória, você sabe, é aquela em que se deslocam as colméias para os lugares onde a florada é mais abundante. Nessa época Francisco já passava dos setenta anos de idade e começava a desenvolver aquelas paranóias que sinalizam a senilidade: discussões freqüentes por motivos banais com a mulher, obstinação na defesa dos seus pontos de vista e... diga você o resto. Entre essa paranóias estava a de que a mulher sempre o contrariava, sem mais nem menos, só por prazer. Elizabeth, sua esposa, era austríaca e uma santa mulher, um modelo de tranqüilidade. Chegada ao Brasil já adulta falava com um sotaque divertido e era um prazer ouvi-la.

Numa visita que lhe fiz nessa época sentamos para tomar chá na enorme copa
da enorme casa que ele mesmo havia desenhado e onde era difícil distinguir as fronteiras entre a casa e a oficina. Elizabeth estava na cozinha e podia-se vê-la debruçada sobre o fogão.

-- Luis, quero que você prove o mel que acabei de tirar. Deu uma produção enorme.
Provei o mel e comentei:
-- Este mel é bom, Francisco, mas tem gosto de cana.
-- Cana? Que cana? Como, cana?
-- Cana de açúcar. Você colocou as colméias perto de algum canavial?
Francisco provou o mel.
-- Você tem razão, tem gosto de melado. Como é possível? Ah, você quer ver uma coisa, você quer ver, quer ver? Vou dizer isso pra Bete. Ela vai dizer que não é nada disso, que eu estou maluco, só para me contrariar. Quer ver, quer ver?

-- Bete! Oh, Bé!
-- O que é Franzisco?
-- Este mel tem gosto de cana, você sabia?
-- Klaro, Franzisco. Só temm cana nesse lugar. Focê kerria que tinha gosto te frampoesa?

Perto de completar noventa anos, Francisco está acamado. Vou visitá-lo, em Santo Amaro, nem sempre com a freqüência que ele merece. Debilitado fisicamente, está sempre implorando por piedade. È compreensível. Sente-se indefeso e impotente.
Outro dia telefonei-lhe para saber como andava a saúde. Respondeu-me num tom que parecia vir do além:
-- Oh, oh... estou aqui morrendo, não posso me mover, oh... estou morrendo ...
-- É Francisco, todos nós vamos morrer um dia.
-- ... não posso comer mais nada ... só soppinha ... pappinha ... osso buco ...
-- Osso buco? Gritei eu. Você esta comendo osso buco? Isso é pesado até pra mim e você vem me dizer...
Flagrado, ele se recompõe do deslize e dispara com toda a vitalidade:
-- É, você sabe né, Luis pra fazer o osso buco direito tem que aprender. O osso buco se acompanha com risotto. É preciso tirar o tutano do osso e colocar no risotto que assim fica mais cremoso ...

Não o interrompi. Ele continuou descrevendo pratos que comíamos quando crianças. Depois começou a recitar poesias. Dante, Carducci, D’Annunzio, poesias que ele aprendera na escola primária, ao pé das montanhas, junto ao Lago de Iseo, até os 12 anos de idade, quando emigrou. Durante meia hora ele recitou poesias sem parar. E durante meia hora eu chorei. Chorei por ele e por suas lembranças. Chorei pela professora que lhe transmitira aqueles versos sem imaginar que ele os recitaria aos noventa anos, depois de atravessar um oceano. E chorei por sua escola e pelas coisas que se ensinavam naquela época.
Luigi

Um comentário:

  1. E eu chorei por tudo isso e também chorei porque vc chorou e também por aqueles que vão chorar quando lerem daqui a muitos anos. Chorei por quem tem irmãos que moram longe e por quem não tem irmãos e ...Ah e chorei porque não conheço o Francisco e nem a sua cunhada! Belo Texto. Paçoca

    ResponderExcluir