sábado, 10 de abril de 2010

ALDENOR, O MESSIAS

O Aldenor morava com cinco mulheres. A esposa, a mãe da esposa, uma irmã da esposa, uma sobrinha e uma enteada. Não tinha filhos. Todas o amavam, e o serviam, e o seguiam como se fosse um novo Messias enviado especialmente para redimir mulheres. Sempre magnânimo, Aldenor distribuía sorrisos, afagos, carinhos, amor no seu sentido mais elevado e, sobretudo, justiça. Morava num casarão colonial onde a harmonia preenchia todos os espaços.
Trabalhamos juntos na Carteira de Crédito Industrial do Banco do Nordeste, em Fortaleza, na Rua Major Facundo, a rua das mariposas, onde o velho Severino curtia as noites com poemas, risadas e cerveja.
Minha base de trabalho era o Recife e eu viajava com freqüência para Fortaleza onde permanecia uma semana ou pouco mais. Eu me hospedava no hotel que ficava no final da rua Major Facundo, outrora aristocrático,
mas que ainda conservava sua posição: de frente para o mar.
Certa ocasião o Aldenor me disse:
-- Galego, na próxima viagem você não vai para hotel. Vai ficar hospedado lá em casa.
Agradeci muito, não queria causar incomodo , essas coisas, mas não houve jeito. Ao desembarcar o Aldenor estava no aeroporto me esperando. Fiquei contente, até porque não conseguia esconder uma curiosidade mórbida: descobrir como é que ele administrava uma casa com cinco mulheres. Foram dias proveitosos durante os quais eu tive a oportunidade de discutir com ele algumas idéias que eu vinha fermentando sobre o desenvolvimento industrial do Nordeste, e pude apreciar o amor que aquelas mulheres dedicavam ao seu Messias.
Solícitos ao extremo, tanto ele como sua esposa Maria desdobravam-se em atenções, cuidando dos menores detalhes para que eu me sentisse à vontade sem, contudo, exercer qualquer pressão. Cuidavam especialmente da cozinha. Entre as iguarias que a Maria preparava estava a paçoca, prato preferido do Aldenor. Embora tivesse esse nome a paçoca no Ceará não era a nossa conhecida paçoca, feita de amendoim e açúcar. Aquela era uma combinação de carne seca e farinha de mandioca socadas num pilão. Uma delícia! Todos os dias comíamos paçoca. Estou exagerando. Não era todos os dias. Dos oito dias que passei lá só comi paçoca em sete deles.
Certamente a memória organoléptica do Aldenor não era das melhores porque certo dia, na hora do jantar, o único jantar em que a paçoca não compareceu, ele virou-se para a esposa e disse:
-- Amôooor! Há quanto tempo você não faz uma paçoca, você poderia preparar amanhã, estou sentindo falta. E a paçoca retomou o seu curso.
Na véspera da minha partida – eu viajaria às seis horas da manhã – Aldenor declara:
-- Amanhã vou lhe deixar no aeroporto.
Recusei peremptoriamente:
-- Não vou permitir, vou chamar um taxi e...
-- Nada disso. Tomamos café com o bolo que a Maria fez...
-- Pior ainda. Não posso deixar que a Maria acorde a essa hora para fazer café, eu tomo no aeroporto.
A discussão não terminava, eu não conseguia persuadir o Aldenor. Eu me sentia realmente mal com o incômodo que estava causando e resolvi apelar
para um argumento que causasse impacto. E saí com esta idiotice:
-- Escuta, você não pode me levar no aeroporto amanhã, sabe por que?
Porque, para começar, vai chover durante toda a viagem, depois vai furar o pneu do carro e, se duvidar, você ainda vai bater com o carro na volta.
O Aldenor não dirigia, só andava de taxi e, assim, na manhã seguinte o taxi estava na porta. Embarcamos em silêncio, eu ainda constrangido. A Maria nos acompanhava.
Chegamos, retiramos a bagagem e ficamos sob uma marquise, a dois metros do taxi, fazendo nossas despedidas. Depois do último abraço, quando já estava para sair, percebi que uma chuva fininha começava a cair.
Lembrei-me das bobagens que eu havia falado e não deixei por menos:
Está vendo, Aldenor, já começou a chover. Agora só falta furar o pneu...
--PPPPffffffff...fffff...ffff...fff...ff...f...!
Todos olharam para o carro a tempo de ver o pneu traseiro direito baixando...baixando...
Só me lembro da voz do motorista, perfilado ao longo de seu carro:
-- Que boca!
Encontrei o Aldenor quando veio ao Recife, duas semanas depois:
-- Você não sabe mas naquele dia, quando voltava do aeroporto, a chuva engrossou e um carro que vinha numa transversal derrapou, e quase nos acerta.
Sei que alguém poderá não acreditar nesta história. Não me ofendo por isso. Eu mesmo passei a vida me perguntando por que foi que isso aconteceu. E se o escrevo é porque quero que fique registrado. Tenho medo de que um dia eu chegue a pensar que isso nunca ocorreu. Perguntem ao Aldenor.

Luigi Spreafico

12 comentários:

  1. Vou imprimir, ler mais três vezes em voz baixa, uma em voz alta, vou procurar todos os vocábulos que não entender no dicionário e depois emito minha opinião. Mas tenho poucas esperanças de entender o cerne da questão. Cerá que cerne é com éce ou com sê?

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  2. Colegas
    Acrescentei um periodo à crônica. É meramente descritivo, não interfere no conteúdo da história. Começa em..."Foram diasproveitosos" - e termina em - ... "aquelas mulheres dedicavam ao seu Messias".

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  3. Meu caro Aldenor
    Lamento profundamente o ocorrido. Imagino que, tantos anos depois, esse inusitado incidente seja somente motivos de boas risadas em sua famíla. E, pelo final da história, imagino que você e o senhor Severino-Lingua-de-Trapo tenham mantido a amizade, pelo menos por algum tempo. Eu, em seu lugar, o teria mantido sob vigilância, mas a uma distância prudente.
    Não é aconselhável virar inimigo de alguém capaz de traficar nuvens e acidentes automobilísticos.
    Agora, com toda a franqueza, me pergunto qual teria sido o motivo do senhor em questão ter desencavado essa história depois de tantos anos. Será que está tentando nos fornecer uma pista para a casa do dlúvio que assolou o Rio de Janeiro na última semana? Será que foi obra sua? Será que, descontente com os rumos da política ou coisa parecida encomendou uma lavagem geral da cidade? Se foi isso, francamente, acho que exagerou um pouco....
    Bom, aqui fica a minha solidariedade e os meus agradecimentos sinceros pelo aviso: Severino-Lingua-de-Trapo, cuidado com o que fala!
    Do seu
    Noronha

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  4. Meu caro Noronha
    Falo em meu nome e em nome também do Aldenor. Claro que mantivemos a amizade e ele era quem mais ria com o acontecimento. Mas a história não terminou aí. Pouco tempo depois ele me faria uma surpresa que eu espero contar numa próxima crônica.
    E já que você falou em dilúvio no Rio de Janeiro quero lhe garantir que não tive nada com isso. Dilúvio mesmo, que eu vi, foi o da Fábrica de Tecidos da Estância, em Sergipe. Quem sabe um dia eu conto essa história.
    Severino

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  5. Colegas
    Desculpem , mais uma vez. Mudei o título. Mas não é para aprender que estamos aqui?
    Luigi

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  6. Prezado Severino
    Sua garantia de que não está por tras do dilúvio fluminense muito me tranquiliza. Mas então, de uqem foi a culpa? Andam dizendo por aí que a culpa é os mortos... Pode ser, talvez tenham mesmo tramado um suicídio coletivo, tanta coisa doida nesse mundo moderno!
    Quanto à Fábrica de Tecidos, que história é essa? Agora fiquei curioso.
    Abraços felinos
    Do seu Noronha

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  7. Desculpem os erros de digitação acima. Isso é que dá não reler o texto!

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  8. Meu querido Mônica
    Vou te contar a história da Fábrica. Preciso de algum tempo. Abraços ferinos.
    Severino

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  9. Hasta la Vista, Babies !

    Meu caro Luigi, permita-me uma intromissão no seu espaço.

    Faltei descaradamente ao encontro e ainda por cima não fiz o dever de casa. Estou meio sumida do blog e não comentei a crônica do Aldenor, que por sinal gostei muito.
    Morta de arrependimento, prometo-lhes um afajor, para a redenção dos meus pecados, já que as media lunas ficariam murchas do cansaço da viagem. Com certeza voltarei com ótimos ares.
    Se a Paçoca puder me enviar o dia do próximo encontro agradeceria de coração.

    Mil beijos a todos,

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  10. Ei vocês aí em cima apaguem a luz que eu quero dormir!!!!!

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  11. Ôooo seu Messias, desculpa mas eu estou cismada mesmo é com a paçoca e com as mulheres do Aldenor. Tenho a mania de me colocar no lugar das pessoas, e fico imaginando o trabalhão que dá fazer paçoca de carne seca. Imagino que a Sra do Aldenor não tivesse um processador e então a dita era feita ao pesto, no pilão mesmo, e nounico dia que a pobrezinha descansar do trabalho, o Aldenor insensível pediu todo fofinho a paçoca. Acho que é por adorar paçoca-de-carne-seca que ele vivia em tanta harmonia com suas cinco mulheres.
    Agora falando sério, quando o texto é bom não importa se é verdade ou mentira, o que importa é que cada um vai ter uma leitura e gostar. Simples assim! Eu queria dizer que o texto é bom entendeu?

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