sábado, 29 de maio de 2010

POR TRÁS DAS CORTINAS

Foi por trás das cortinas, dentro do quarto da Rainha, que Hamlet atravessou Polônio com um punhal, pensando tratar-se do Rei Claudio, assassino do seu pai.
Não gosto de falar de mortes, ainda mais quando são assassinadas. Tive que fazê-lo aqui, por força do dever, e foi apenas uma citação. Não voltarei a abordar temas dessa natureza pois isso seria a minha morte.

Foi por trás das cortinas do salão nobre do Palácio do Governo do Estado de Sergipe que ouvi o Governador Seixas Dória, convocado pelos militares em 1964, defender-se da acusação de comunista e subversivo. Impotente, ele se justificava com frases ingênuas, tentando demonstrar que não tinha nenhum envolvimento com a subversão e que sua única preocupação era fazer um governo digno e honesto.
Eu estava sentado por trás das cortinas aguardando uma entrevista com o Governador , a qual havia sido postergada justamente por aquela reunião imposta pelos militares. Testemunha involuntária dos acontecimentos, eu me sentia constrangido. Como podia um governador, eleito livremente pelo voto do seu povo, ser humilhado daquela maneira?
Encerrada a reunião, as cortinas foram abertas e, oh! ironia, foi servido um cock-tail. No momento em que me apresentavam ao Governador, um soldado garçom se aproxima e oferece um drink. Lembro-me até hoje das palavras do Governador, abatido mas sorridente:
-- O senhor aceita um cálice? Pode tomá-lo tranqüilo, não é o cálice da amargura.
No dia seguinte o Governador Seixas Dória era conduzido, algemado, para o presídio de Fernando de Noronha.

Foi por trás das cortinas do Teatro Santa Isabel que vivi uma das maiores emoções da minha vida. Era a minha primeira experiência como ator e estreava a peça “O Diário de Anne Frank”. O ensaio geral havia transcorrido de maneira perfeita. Diálogos, marcações, figurinos, entradas e saídas, contra-regra, luz, som, tudo havia funcionado à perfeição. Noite de estréia, eu andava eufórico de um lado para outro do palco, conferindo falas com os colegas, melhorando inflexões, ajustando figurinos, deixando palavras de incentivo para os mais temerosos. Espiei através da cortina fechada e me deparei com o espetáculo deslumbrante do teatro vazio, feericamente iluminado. Um ligeiro calafrio me percorreu a espinha. Nada mais natural, pensei. Uma estréia é uma estréia e eu sabia que até o Sergio Cardoso, quando interpretava Hamlet, ficava nervoso. Continuei no meu vai vem quando percebi um certo rumor que, aos poucos, ia se avolumando. Não dei importância e continuei na minha euforia. O rumor continuou subindo de tom e agora parecia um murmúrio que ia crescendo, parecia vir do céu, o volume cada vez mais alto, difuso, indecifrável. Suspeitei que viesse da platéia. Resolvi espiar por uma fresta da cortina. O murmúrio tornou-se ensurdecedor, o teatro completamente lotado de gente elegantemente vestida conversando em voz baixa que, para mim, naquele momento, parecia um trovão. Fiquei paralisado. As três pancadas de Molière, repercutindo no chão de madeira, tiraram-me do torpor. Ocupei minha posição no palco . As cortinas se abriram.

Por trás das cortinas de uma sala de visitas um pai descobre a frivolidade do filho, já adulto, e resolve dar-lhe um conselho. No terceiro ano do curso primário do Grupo Escolar João Vieira de Almeida, na Vila Maria, onde eu só cheguei aos nove anos, tínhamos um “livro de leitura”. Esse livro trazia pequenas histórias, lições de civilidade, feitos históricos e, cá e lá, algumas poesias. Esse livro sumiu, evidentemente, tão logo terminei o curso primário, mas dele gravei um soneto, que guardo na memória até hoje. O autor do soneto também se perdeu com o livro.
Vou transcrevê-lo, tal como o lembro:
TERTULIANO

Tertuliano, frívolo peralta,
Que foi um paspalhão desde fedelho,
Tipo incapaz de ouvir um bom conselho,
Tipo que, morto, não faria falta;
Lá um dia deixou de andar à malta,
E, indo à casa do pai, honrado velho,
A sós na sala, em frente a um espelho,
À própria imagem disse em voz bem alta:
- Tertuliano, és um rapaz formoso!
És simpático, és rico, és talentoso!
Que mais no mundo se te faz preciso?
Penetrando na sala, o pai sisudo,
Que por trás da cortina ouvia tudo,
Serenamente respondeu: Juízo.
Depois destas evocações eu não podia deixar de investigar alguma coisa sobre este soneto. Descobri que a memória me traiu em vários pontos:
1. O autor, cujo nome não lembrava, é Artur Azevedo
2. O nome do soneto, que eu julgava ser “Tertuliano”, é “Velha anedota”
3. Em lugar de “em frente a um espelho” é: “diante de um espelho”
4. Em lugar de “ouvia tudo” é “ouvira tudo”
5. Em lugar de “Serenamente respondeu” é “Severamente respondeu”

Assim é, colegas, se lhes parece. Como dizem os paulistas:
“O Mundo gira e a Lusitana roda”

Severino Mandacaru

sexta-feira, 28 de maio de 2010

O preto o roxo e o aguado!




Escolhi este assunto entre muitos que foram sugeridos pelos amigos do Depois da Oficina. Andava sem inspiração precisando de um empurrãozinho. Imaginei que ia ser fácil. Adoro cores. Em criança ao ser perguntada o que gostaria de ganhar, respondia sem titubear: Quero uma caixa de lápis-de-cor. Acabei com muitas caixas, tentando colorir a minha vida. A cor já foi até meu ganha pão. E agora que preciso delas para contar uma história, vejo tudo preto.

É isto, tudo preto, uma melancolia de fazer gosto. Quando me bate esta melancolia não sinto vontade de fazer nada, ou por outra sinto vontade de chorar uma semana. Cadê as lágrimas? Lágrimas são incolores! E o tempo? Para chorar uma semana é preciso tempo, no mínimo uma semana. Mas a vida não me espera, o céu de outono me acusa de azul anil.


O dever me chama, a máquina com a roupa branca já centrifugou é preciso colocar a roupa azul. É, não vai dar mesmo para ficar chorando, vou ter escrever meu texto. Deus do céu me deu um branco, as palavras não vem. Também quem mandou chamar-me de enfadonha.

Calma. Na dúvida mantenha a calma. Conte memórias, as pessoas gostam de saber da vida da gente, mesmo que não seja lá tão verdadeiro. Então mãos à obra.


Trabalhei num estúdio de fotolitos, que mais parecia uma versão pós-moderna da nave do Dr. Spock. Os equipamentos eram de última geração, tanto no design quanto na tecnologia. Os operadores trabalhavam de jalecos, luvas e pantufas impecavelmente brancos. Toda uma parafernália que era muito mais marketing do que funcionalidade.


Vendo aquele estúdio futurista, o cliente (com toda a razão, que sempre a tem) não queria nem saber, achava que me entregando a reprodução de um quadro de Pablo Picasso, por exemplo, obteria um impresso idêntico ao que ele tinha visto em Paris, em sua última temporada de ócio criativo.


Missão impossível. Um original, que não era tão original assim. A tela que mostra uma cor, a impressora de provas que imprime outra e o produto final que tem pouco a ver com o original. Na verdade eu só podia fazer oitenta por cento do trabalho, os outros vinte por cento gastava tentando convencer o cliente que computador não erra! Ou seja: o original em preto, aparece na tela para mim em roxo e a impressora de provas deixa o roxo um tanto aguado. Mas, na verdade o pintor tinha escolhido um azul marinho!


Meu tempo acabou, a melancolia continua, o céu já está sendo invadindo pelo amarelo do por do sol, não vou poder reler e agora só me resta convencer o leitor que terminei o texto!

FIM !

Miranda



sexta-feira, 21 de maio de 2010

UMA FLOR PARA MINHA MÃE

Memórias. Sempre memórias. Para que servem? Por que as contamos? Para quem as contamos? Se eu tivesse resposta para essas perguntas, eu jamais as escreveria. Memórias! Com algumas nos sentimos glorificados. Com outras, envergonhados. Muitas nos rejuvenescem - Picasso dizia que “levamos muito tempo para ficar jovens” - Outras apenas nos mostram o peso da senilidade. Contamos verdades.
E quem acredita nelas?
Eu não havia ainda completado os sete anos de idade quando caminhava com minha mãe pela calçada da Avenida Guilherme Cotching, na Vila Maria, na pequena metrópole que era a cidade de São Paulo daquela época. A avenida está lá até hoje, com o mesmo nome ridículo. Minha mãe caminhava com rapidez . Em dado momento, vendo que eu me atrasava, deteve-se e, virando-se para mim, fulminou-me com seu olhar meigo:
-- Anda depressa, filho!
Nesse exato momento, a um passo do lugar onde ela se detivera, e na mesma direção, desabou um enorme vaso de barro, espatifando-se no chão, espalhando terra e margaridas por todos os lados.
Minha mãe passou o resto da vida contando que a minha preguiça lhe salvara a vida.
Severino Mandacaru

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Fim de férias (Monica Noronha)



Meu Caro Bela
Há quanto tempo sem notícias de todos, e vocês sem notícias minhas! Quanta saudade, meu velho! Nem sei se esta carta chegará antes de mim, que em breve estarei de volta. Mas como consegui um portador, coisa difícil aqui no Paraíso, não resisti e resolvi escrever algumas breves linhas.
O que dizer desta maravilha que é a Pousada? Nem sei por onde começar. Depois de todo o tempo por aqui, são tantas as novidades que é difícil escolher um começo. E se eu esquecer alguma coisa também não tem importância, o que não faltará é tempo na minha volta para colocarmos os papos em dia. Manda logo o Bigode separar uma caixa de cervejas, o que não falta é assunto. Então vamos lá:
Primeiro, os Spreaficos: que gente acolhedora, meu Deus. Não teve um dia sequer em que o distinto Luigi não tenha reservado pelo menos uma horinha para uns dedinhos de prosa comigo. E olha que ele sim, é uma pessoa atarefada, ele a sua distinta senhora. Quando tocam o sino de despertar, lá pelas 5:00h, há muito eles mesmos já estão de pé e com o café da manhã preparado, para todos os hóspedes. Então comemos uma breve refeição frugal e saímos para o campo. Sua senhora não vai conosco porque tem seus afazeres no Paraíso, mas jamais se esquece do delicioso lanche do meio da manhã, cada dia uma iguaria diferente.
Nossa rotina: como acabei de contar, acordamos todos os dias com as galinhas, quer dizer, um pouquinho antes delas, porque quando elas acordam já querem logo ter o seu milho à disposição, então temos que estar todos de pé antes delas. Tomamos o desjejum preparado pelos Spreaficos (além de muito distinto meu novo amigo Luigi é um ótimo cozinheiro) e saímos ao campo. Nossas tarefas são simples, bem mais simples do que a rotina enfadonha que eu tinha quando era funcionário dos correios: aparamos a grama, cortamos mato para as vaquinhas, tiramos mel das colméias, colhemos frutas e verduras para o almoço e a sopa do jantar. Lá pelas 9:30h nos sentamos em alguma pedra para desfrutarmos do delicioso lanche e voltamos a trabalho. Terminadas as tarefas, voltamos para a sede do Paraíso, nos banhamos (detalhe, aqui não há chuveiro nem água quente, mas sim um cano que sai da parede, com uma deliciosa ducha) e nos sentamos à mesa para o almoço. À tarde saímos para uma longa caminhada morro acima, de onde nos extasiamos com o por de sol mais belo que já vi em minha vida. Findo o sol, uma branquinha da roça, a bela sopa do dia e cama. Estou revigorado, meu velho, com a disposição de um menino!
Bom, preciso terminar, o portado já está aqui ao meu lado. Volto no próximo final de semana, preparem uma bela feijoada que estou louco para comer umas gordurinhas! Convide todos, que essa vai ser por minha conta. Infelizmente não terei fotos para mostrar, minha câmera caiu num riacho logo na primeira semana, mas tenho tudo registrado na memória.
Um grande abraço, a você e a todos e todas
Ah, convide também o filho da puta do Bigode, vou pagar umas cervejinhas para o canalha. E não se assustem com a minha aparência, desde que cheguei por aqui não pude em barbear (o Paraíso não tem espelhos), emagreci acho que uns vinte e cinco quilos e tenho algumas picadas de insetos pelo corpo, mas a alma, ah, a alma está magnífica!
Do Seu
Vavá

quarta-feira, 12 de maio de 2010

COISAS QUE EU QUERO CONTAR

Quero contar os amores que vivi e os amores que perdi.
Quero contar as dores que sofri e os males que causei.
Quero contar de vales e cordilheiras por onde andei.
Quero contar de lagos e montanhas onde nasci.
Quero falar das árvores que plantei, dos filhos que criei e dos livros que não escrevi.
Quero contar as desventuras por que passei nos mares que singrei e nos ares que cruzei.
Quero contar como é dura a vida na caatinga, a pele calcinada pelo sol, o olhar de angústia na criança faminta, o riso amargo saindo das rugas do velho desamparado.
Quero contar o pôr do sol no São Francisco, o brilho da lua cheia no Capibaribe, o verde cristalino do mar além dos arrecifes.
Quero falar dos vinhos que bebi e da sede que sofri.
Quero contar como ressoa o apito da fábrica, como estala a batida intermitente do tear e como ecoa a voz alegre da tecelã.
Quero contar como vivem as almas penadas dos insetos assassinados nos campos de lavoura.
Quero contar fábulas. Para dizer cobras e lagartos, engolir sapos, desvendar o segredo da aranha, cantar como a cigarra, ser astuto como a raposa, ágil e faceiro como o serelepe, vaidoso como o pavão. E beber como um gambá.
Tudo isso quero contar. E antes que os tempos acabem, quero deixar pronto o meu epitáfio, que contará:
“Aqui jaz aquele que pouco contou.
Porque o que contou era verdade. E ninguém acreditou.
Aqui jaz aquele que sofreu a angústia de não saber contar
tudo aquilo que queria contar”.
Severino

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Sempre detestei crianças mimadas. Agora não detesto mais!


Dia desses fui lanchar num café que eu adoro. O Lugar é pequeno no máximo dez mesinhas mínimas de dois lugares. O cardápio não tem grandes pretensões, mas é por isso mesmo que me atrai. Tudo é feito lá mesmo e na hora. As garçonetes estão sempre impecáveis com um sorriso de quem gosta do que faz e é bem tratado pelos patrões.


Tímida entrei e sentei perto da porta, assim não correria o risco de esbarrar em nada, ser notada e ficar vermelha. Antes mesmo de fazer o pedido, me pediram para trocar de lugar e foi aí que eu sentei ao lado dela: Um tipinho mignon que não devia ter mais do que cinco primaveras. Usava um vestido roxo com capuz e estava sentada de fronte a sua vovozinha. Vovozinha que não tinha nem cabelos brancos, nem era gorducha e nem arrastava os pés. Avó para lobo-mau nenhum botar defeito.


Fiz logo meu pedido: Sanduíche de presunto parma, queijo brie e lascas finíssimas de maçã-verde na baguete. Minha vizinha de mesa, não sabia o que queria. A vovozinha, com uma paciência de avó oferecia de tudo e nada da menina se decidir. Tive que afastar a minha mesa umas duas vezes para Julinha (descobri o nome do tipo mignon de capuz roxo) ir ao balcão e ver o que a apetecia.


Finalmente a vovó fez o pedido e Julinha com medo de ficar sem nada, também pediu. Na verdade as duas pediram a mesma coisa: A vovó quis doce e ela salgada: uma cheesecake e um quiche.

O pedido da avó, já estava pronto e chegou antes. A menina Júlia não gostou nada e ficou indignada de ter um morango em cima da torta. Reclamou, bateu pé, fez birra e até chorou.


A avó, nem se abalou. Disse mais de cem vezes que aquele não era o pedido dela, que o dela não tinha morango e viria depois.


Julinha, menina, birrenta e mimada, de vestido roxo com capuz, tipinho mignon, inquieta que estava, começou a reclamar de frio. Na verdade algo a incomodava além do friozinho gostoso do ar condicionado.A guria só parou de reclamar, fazer birra, dar ordens à avó, que tinha paciência de Jó, quando sua torta de queijo chegou e sem morangos!


Ah! tá bom, vou confessar ela reclamou, mas, só mais duas vezes: a massa da quiche estava dura (parecia mesmo) e ela estava com sede, mas que a água viesse sem bolinhas. Advertiu.


Fiquei pensando porque a menina reclamava tanto e parecia tão séria e insatisfeita?


Acho que ela provocava a paciência da avó em busca de limites. Alguém naquela família teria que ter coragem de dizer-lhe um não redondo. Julinha estava cercada de covardes que ao menor beicinho morriam de medo e cediam. A menina ficava muito insegura. Quem conseguiria protegê-la, se não a protegiam nem dela mesma?

De repente, compreendi os colegas de infância mimados que tanto detestava. Coitados eram mimados e não tinham quem os protegesse, eram inseguros.


Termino como comecei: Sempre detestei crianças mimadas. Não detesto mais.


MIRANDA

terça-feira, 4 de maio de 2010

OS DESAFORISMOS DO SEVERINO

Se você vai sair para matar o tempo, ande depressa. Senão você não vai ter tempo para matar.

Ser pontual não é chegar na hora. Ser pontual é chegar cinco minutos antes da hora.

Meu caminho é iluminado. O problema é quando acaba a bateria.

Pernas, para que vos quero? Para caminhar.

Não estou nem aí ! Não faz mal, eu te espero.

As mulheres dizem: todos os homens são iguais. Eu sou homem. Eu sou igual.

Os homens dizem: todas as mulheres são iguais. Não. Você é diferente.

“Que não haja ofensa em minhas palavras”, diziam os romanos. È o que eu digo, sempre que falo besteiras.

Não pense que você me engana. Eu já estou desenganado.

Quero ser feliz. Mesmo que isso me custe a felicidade.

Sou presunçoso, mas ninguém me acredita.

A gente só faz as coisas quando não tem tempo.

O metrô inventou os bancos xifópagos. São azuis. Estão no Largo do Machado.

O pior cego é aquele que não quer ouvir. Além de cego é surdo.

Diga um impropério. Você ouvirá o eco.

Quando não souber o que dizer não diga nada.

Quero morrer enquanto estou vivo.

“Morreu porque amou” , leio num epitáfio. Ora, se o amor o levou à morte, pra que serviu?

“Morreu de amor” diz o poeta. É melhor do que morrer atropelado, digo eu.

Drummond de Andrade disse: "Escrever é trocar palávras". Eu não faço outra coisa. Então já sou um escritor. Ah! também vivo trocando pernas.


Recomendaram-me ler o livro "Para Escrever Como Um Leitor", de Francine Prose.
Tive que lê-lo de trás para a frente.

Dizem que sou um intransigente. Ora, deixem-me ser alguma coisa, que diabos!

Na linguagem popular do Nordeste, pelo menos em Pernambuco, existe uma expressão que encerra um poder de comunicação tão forte que, para mim, é insubstituivel: "torando um aço". É usada para indicar situações de medo intenso e suas formas superlativas, como pânico e terror. Significa que o indivíduo é capaz de cisalhar, com os esfíncteres, uma barra de aço de diâmetro não definido mas certamente proporcional à sua capacidade muscular. "Torar um aço" não é para qualquer um. É preciso ter coragem, não só para faze-lo mas, principalmente, para confessá-lo.


Severino Mandacaru

sábado, 1 de maio de 2010

Vou alí e já volto

Tenho pavor a despedidas. E quando parto para uma viagem, por mais curta que seja, começo logo a pensar na alegria da volta. Só assim consigo atenuar a tristeza que sinto ao afastar-me dos meus amigos. Gostaria que fossem comigo, temo perdê-los com a ausência. Fico imaginando os momentos de alegria inusitados que poderíamos compartilhar durante esse convívio, longe da rotina domésticas de cada um.
O desconforto de bordo não me permite maiores divagações. Servem-me um lanche numa tigelinha onde identifico uma espécie de salada cujo principal ingrediente são grãos de milho inteiros, felizmente cozidos. Nada mais adequado, penso eu. O lugar onde estou é a coisa mais parecida com aquelas gaiolas que se usam para transportar galinhas. Não posso me queixar. Eu não sou mais do que um bípede depenado.
Desço no Aeroparque, o aeroporto doméstico que eu não conhecia, próximo ao centro da cidade. Fantástico, em quinze minutos estou no hotel.
Buenos Aires está de mau humor. Não encontro mais aquela alegria que contagiava o turista. As pessoas correm pelas ruas falando pelo celular em tom áspero, gesticulando nervosamente, desferindo golpes no ar. O atendimento nas lojas não é cordial como outrora e os garçons parecem mamulengos.
Soçobrando entre medialunas e almendrados sinto falta do chopinho e das batatas fritas com os meus amigos, depois da oficina. Vou para o Ateneu e os encontro esgueirando-se por entre os livros ou espalhados pelas frisas e camarotes trocando olhares entre si como se não me vissem. Vago pelo palco. Volta-me a nostalgia das aulas. Invade-me o afeto que surgiu daquela convivência desprovida de preconceitos e de vaidades. Quero levá-los ao “El Buller”, em Recoleta. Lá tem cerveja de verdade. E poderemos rir e chorar.
Severino Mandacaru