sábado, 19 de junho de 2010

Literatura Naif


Quando, trezanosatráz, deu-me na telha escrever memórias, pensei que poderia usar a expressão “literatura naif” para justificar os meus erros de português. Erros elementares, banais, que continuam comigo até hoje. Nem sequer lhes sei os nomes. Mas, ou eu escrevia, ou estudava gramática. Então pensei: se um pintor naif, que nunca aprendeu perspectiva geométrica, projeção, épura, poliedros e o que mais for, é contemplado nos museus e galerias por que um escritor que escorrega na sintaxe e nas vírgulas não pode ser lido? O que ele precisaria, obviamente, era ter algo de interessante e bonito para contar. Isto a vida me tinha dado (desculpem o metinha), não precisava inventar nada, bastava contar a verdade.

Naquela época descobri um blog que se chamava “blog do escritor” , um blog sério, de gente competente, pois entrevistava grandes escritores. Como ele oferecia um espaço para comentários perguntei se a expressão “literatura naif” era usada e em que circunstancias. A resposta foi curta, grossa, clara, precisa e contundente: “Toda a literatura é naif”. Nem mais uma palavra.

Fui, então, aos sites de busca cuidando para não cair nas trampas de costume. Encontrei coisa interessantes como, por exemplo, “Cervantes e a Literatura Naif”, um ensaio sobre o Don Quixote e o blog de uma professora portuguesa que contracena com escritores - vamos chamá-los - primitivistas. Parei de pesquisar porque, como aconteceu com a gramática, ou pesquisava, ou escrevia.

Voltei às minhas lembranças e comecei a avaliar o que havia aprendido em matéria de arte naif. No meu tempo de Severino conheci dois pintores primitivistas que tiveram alguma projeção: Gina, em Olinda e Chico da Silva em Fortaleza. Ambos estavam no auge da fama dentro do seu mundo. Gina expunha nas melhores galerias do Recife (vá lá, não eram muitas) e Chico acabava de voltar de uma exposição em Paris encerrada com muitos aplausos e todos os quadros vendidos. Nessa ocasião Chico da Silva foi consagrado por Andre Malreaux, que o colocou entre os dez melhores primitivistas do mundo. Ambos caíram em desgraça junto aos “marchand”, vale dizer, junto ao mercado de arte: Gina por não cumprir os compromissos nas exposições que realizava - eu mesmo participei de um desses fiascos quando, com grande dificuldade, em plena ditadura e com a ajuda de alguns amigos - arranjei-lhe um salão para que expusesse em São Paulo e ela não compareceu; o Chico, por ter permitido que uma sobrinha imitasse a sua pintura inundando as calçadas de Fortaleza de quadros a dois tostões. No auge da fama os turistas deslumbrados se abarrotavam de galos e dragões habilmente impingidos pelos camelôs cearenses, indubitavelmente os melhores do mundo.

Chico bebia muito. Misturava cerveja com whisky Old Eight, mistura que, descobri mais tarde, era, pelo menos para ele, alucinógena.
Passei algumas noitadas bebendo com ele num botequim vizinho ao casebre, pouco mais que um mocambo, onde ele morava. Falava sem parar. Ouvi-lo era um deslumbramento. Ele descrevia os animais fantasmagóricos que a sua imaginação criava com o mesmo furor com que os pintava. Ouvi-lo falar sobre a ditadura era como ler o Samba do Crioulo Doido, do Stanislaw Ponte Preta, só que dez vezes melhor.
Foi naquela época que escrevi “A Centenária” , que era apenas um conto e não uma memória. Mas que se tornou memória porque, inspirado numa noite na cadeia, ficou soterrado durante quarenta e dois anos. Desenterrei-o porque achei que seria ele que me consagraria como escritor naif.

Bem, é isso aí. Amanhã começo a estudar gramática. Essa história de escritor naif não vai colar.

Luigi

3 comentários:

  1. Prezado Mestre,
    Será que Naif pode ser ingênuo? Não no sentido de simplório, mas no sentido de livre de maiores pretensões?
    É com liberdade que o senhor escreve suas memórias. Acho que pelo simples fato de divertir-se com o que está fazendo. E na minha singela opinião é aí que está a qualidade dos seus escritos, despretenciosos e repletos de humor, um pouco sarcástico as vezes, mas ainda humor.
    Gostei muito do texto, não sei se poderia melhorá-lo com alguma gramática. mas quem sou eu para achar algo?

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  2. Você é a Paçoca!
    Quanto ao texto, tem super cara de crônica. Não se preocupe tanto com gramática, até parece que você comete tantos erros assim. Um errinho ou outro todos temos, o que importan como você bem diz, são as muitas histórias de vida que tem para contar, e o prazer que sente ao fazer isso. Você se diverte e os seus textos refletem este prazer.
    Como eu disse vez passada, quando você menos esperar sua vida será um livro aberto!
    beijo
    Monica

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  3. Monica,
    adorei este seu comentário e acho que nosso amigo Luigi vai gostar também!Bjs Paçoca

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