quinta-feira, 3 de junho de 2010

Carta a um amigo imaginário (Monica Noronha)


(repostagem)
Merda, eu aqui de novo escrevendo a você. Não vou falar sobre os novos resultados, todos péssimos. Melhor assim, danem-se. Acho que o que eu gostaria de contar é porque desisti. Quiseram me convencer a tentar de novo, e foi difícil resistir à tentação de “tentar”. Tentar o quê? Era agora ou nunca, e foi nunca. Então o problema é o que fazer com o tempo, o que inventar para ocupar o vazio. Já não tenho mais a paciência com o óbvio, meus livros e CDs e coisa e tal. E escrever tornou-se insuportável, a merda do diagnóstico me ronda a cada palavra, alma penada antes do tempo. E também não quero sofrer. Simplesmente a ampulheta foi virada e a areia está no fim, agora. Tempo, sempre o tempo.
Nem sempre tenho certeza de ter feito a coisa certa, quando decidi pelo silêncio. Confesso que têm horas em que a solidão é insuportável, mas pior do que tudo seria ver a compaixão nos olhos dos mortos-vivos que me cercam. A pena é o bagaço do amor. E também confesso os meus medos: medo da dor, medo da solidão, medo da morte, medo da vida. Medo de ser patético no meu medo, de não ser capaz de ir além do óbvio, de ser medíocre até na minha dor. Então prefiro o silêncio, e o abismo da solidão que me isola de tudo. Como agora. Coloco o pijama e sinto o peso dos tecidos sobre o meu corpo seco. Como se minha pele estivesse em contato direto com os meus músculos e os meus músculos expressassem nada mais do que minha insanidade, a fragilidade que carrego comigo por toda a vida, que faz com que respirar não seja simplesmente deixar o ar entra em meus pulmões e depois sair. Uma vez disse isso a um amigo e ouvi de volta que eu estava louco, que respirar acontecia sem querer, independentemente do desejo. Só os náufragos entendem que é preciso respirar. Foi quando entendi os meus espasmos de dor, que por toda a vida precisei lutar contra o meu próprio naufrágio.
Medo de deixar por aqui as poucas, pouquíssimas coisas que eu ainda amo – o que, precisamente? Talvez uns poucos livros, alguns CDs, e ninguém. Acho que isso é o mais assustador: ninguém. Porque é muito límpido para mim o quanto me afastei dos parasitas que povoaram os meus sentidos ao longo dos últimos anos. Mesmo antes de escolher a morte, acho que já sabia que por muito tempo estaria só. Ou melhor, que sempre estive. O que falo sem dor, diga-se de passagem, acho que até com certa sensação de triunfo por ter percebido a tempo que a solidão é inevitável. Porque tudo o que tenho agora é a dor que a roupa provoca sobre a minha pele, dor que somente existe porque ainda tenho nervos e a vaga consciência de estar vivo. E a sensação aguda de toda a minha solidão.
Talvez por isso a decisão de não tentar. Tentar para que? Acabar sonâmbulo em um quarto de hospital, o andar trôpego sobre os braços de outrem, agüentando, dia após dia, noite após noite, os olhares cínicos da piedade alheia, como se eu fosse moribundo em minha própria vida, um morto vivo. Como se estivessem mais vivos do que eu, em suas vidas sem sentido, uma seqüência encardida de dias inúteis, preenchidos com qualquer coisa. E todos os silêncios dos quais fujo há tantos anos, perfilados na porta de um quarto que não é o meu. A piedade alheia é insuportável, como é insuportável o consenso de lucidez que me cerca. No espelho vejo um louco em um mundo insano, um náufrago entre afogados, alguém que luta desesperadamente contra a vida e contra a morte em um mundo sem sentido. Por isto a morte, a morte consentida, a morte por escolha, faça muito mais sentido do que o viver por continuidade. Como a próxima dose, que bebo em sua homenagem antes de escovar os dentes e dormir.

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