quinta-feira, 10 de junho de 2010

Cai o Short




Claudia Bontempo

O Francisquinho dizia que era perseguição da minha cabeça, mas o Jorge Nelson nunca me inspirou confiança. O embuste já começava pelo nome, que era grande e não cabia direito na boca , na hora de denunciar no pique esconde, ele sempre chegava antes que acabássemos de gritar e se safava.

Tinha umas manias esquisitas de puxar os nossos shorts e de enfiar o dedo no nariz e esfregar na gente. Aparecia cheio de cecê, já de manhã, e eu tapava o nariz com a mão quando ele levantava o sovaco. O Francisquinho, para despistar, afrouxava o riso e afinava a voz, tamanha era a subserviência diante do porcalhão, só porque ele vendia, caro, carretel de linha com cerol para empinar pipa.

Nossa mãe não deixava a gente usar vidro moído na linha; -“ é um perigo, corta o pescoço, que sangra igual ao de galinha ao molho pardo” diziam. Eu ficava apavorada, perdia a concentração na brincadeira, e me atrapalhava toda. Mas não podia entregar o Jorge Nelson, senão o Francisquinho me ameaçava de ser café com leite no pique pega.

Uma vez a D. Lurdes, mãe do Francisquinho, colocou um pedaço de pudim de leite para cada um de café da tarde, mas antes de comer, nós tínhamos que lavar as mãos. Claro que o Jorge Nelson correu na frente, lavando a dele de qualquer jeito, sem nem esfregar o sabão, o Francisquinho demorou mais um pouquinho e eu fiquei por último pois antes queria fazer xixi . Quando sentei à mesa, meu prato estava vazio, olhei para um lado e para o outro, demorando para perceber que o meu pedaço de pudim já estava na pança do trapaceiro, os dois rindo à toa de mim. Fiz menção de reclamar, mas o Francisquinho disse que eu ficaria para trás, pois já ia escurecer e não daria tempo de terminarmos a partida de bolinhas de gude. Fui arrastando o chinelo, com água na boca e sem pudim.

Tudo no Jorge Nelson tinha um quê de trapaça. Se as coisas estavam muito corretas, ele jogava uma armadilha para retirar o seu benefício. Eu avisava, suspeitava, mas era minoria, já que ele era o Tal. Foi preciso acontecer algo muito tosco para desmascará-lo de uma vez por todas.

O Francisquinho era Botafogo doente, um dia, a criançada da rua viu um balão enorme, enfeitado com a “Estrela Solitária”, cair no quintal da casa do avô dele. Corremos todos para ver o resgate do balão, que estava preso nos galhos de um abacateiro. O Jorge Nelson veio devagar e todo solícito se ofereceu para subir na árvore , prontamente o Francisquinho cedeu o lugar, cheio de orgulho por ser o neto do dono do domicílio em que se encontrava o presente vindo do céu. Sozinho, Jorge Nelson desembaraçou o balão dos galhos e desceu como um azougue, enquanto a meninada batia palmas. Quando o Francisquinho já estava com a mão estendida a espera de que lhe entregasse , Jorge Nelson puxou o short dele, deixando-o nu, e aproveitando-se de sua vergonha, na tentativa de esconder o bumbum e todo o resto, fugiu com o balão para bem longe. A gargalhada foi um assombro e veio gente até da outra rua para ver o que era.

Meu amigo, mesmo depois de se recompor, chorou de raiva e jurou que nunca mais queria ver o velhaco. Fiquei com tanta dó, que menti e disse ter fechado os olhos e não ter visto nada quando ele ficou pelado. Acho que ficou mais calmo.

No dia seguinte jogamos peteca e eu ganhei.

3 comentários:

  1. Cláudia Querida,
    Vejo que você está aprimorando cada vez mais este estilo. Fico muito orgulhosa de ter uma amiga assim! Parabéns beijo da Paçoca

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  2. Clauida
    Muito bonita a narração dos folguedos da sua infância. A convivência com certos tipos de carater deixa marcas muito fortes e esta sua história é bem um exemplo disso. Belíssima a forma que você encontrou para recompor a sua vida e sair vingada, com uma simples frase:
    "No dia seguinte jogamos peteca e eu ganhei".
    Simplicidade, objetividae, síntese, está tudo alí. Um modelo de literatura.
    Luigi

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  3. Concordo com ambos os dois acima. Acho que você está se aprimorando como contista, de forma que não sei mais usndo está narrando memórias ou fazendo ficção. De quanlquer forma, muito bom.
    beijo
    Monica

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