domingo, 20 de junho de 2010

O Presente de Casamento


Vejo-me obrigado a transgredir. O tema que nos foi dado é, sem dúvida, palpitante, mas me obriga a uma pesquisa para a qual não estou habilitado. Se fosse Dante ainda arriscaria alguma coisa – não porque o considere melhor poeta, entendam bem - mas porque, de Camões, nunca fui “além da Taprobana” e, muito menos, “por mares nuca dantes navegados”. Não me atrevo. Fico em terra firme, agarrado a estas memórias que agora, ou me fazem rir, ou me fazem chorar, porque algo sempre fazem. Memórias, sempre memórias! Para que servem? Para serem lembradas.

O Presente de Casamento



O espetáculo das Cataratas de Sete Quedas, visto do céu, era deslumbrante. Eu estava dentro de um DC3 que levava somente dez passageiros. O avião fazia vôos rasantes tão baixos que a água, borbulhando ao despencar no abismo, respingava nas janelas. Dividido entre o medo e o deslumbramento, eu mal conseguia respirar. É impossível descrever aquelas cenas, como é impossível esquecê-las. E pensar que as Sete Quedas foram varridas do mapa.
Era o ano de 1963. Eu queimava a mufla no “Programa de Reequipamento da Indústria Têxtil do Nordeste” implantado pelo ministro Celso Furtado na recém criada Sudene. Fui indicado para fazer um curso de “Técnico em Desenvolvimento Econômico”, promovido pela Cepal - Comissão Econômica para a América Latina, um organismo das Nações Unidas - e ministrado no Rio de Janeiro. Terminado o curso, dez alunos foram selecionados para conhecerem o estado do Paraná. O Governo do Estado queria divulgar o seu potencial econômico para atrair investimentos e encontrara naqueles técnicos os veículos adequados. E assim visitamos indústrias, cafezais, plantações de mate e, o mais importante, culturas de algodão ainda incipientes e em fase de experimentação. Visitamos também jazidas de xisto betuminoso de onde a Petrobras esperava , curiosamente, extrair petróleo.
Os meus colegas de curso vinham de diversos Estados e nem todos eram economistas. Havia engenheiros, sociólogos e também um jornalista, a figura mais notável de todo o grupo. A ele devo a minha reeducação na cidade do Rio de Janeiro de onde eu havia saído muitos anos antes. Eduardo Antônio Alves era jornalista da Revista Visão, o semanário de opinião lido por todos os executivos do país. Eduardo era do Rio de Janeiro, um modelo de carioca: sempre alegre, divertidíssimo, irreverente e brincalhão. Ele me dizia:
-- Galego, o que é que você está fazendo lá no Pernambuco? Você está perdendo tempo lá. Você tem que vir pra cá, rapaz. Você sabe comer de talher, sabe dar nó na gravata, tem tudo o que precisa pra trabalhar aqui. Olha pra mim, eu tenho um bom emprego, ganho bem. Eu trabalho com as duas armas mais poderosas que existem: o medo e a vaidade. Vem pra cá!
A viagem fluía alegre e descontraída, entrecortada por almoços de frango com polenta e vinho “dos colonos”. O vinho não era lá grande coisa, mas eu também não era. Um dia o Eduardo entrou no meu quarto, com ar sisudo:


-- Seu cabeça de bagre, vê se desgruda dessa agenda e presta atenção no que acontece em volta.
-- O que é ?
-- Você não viu que a Dalva não tira os olhos de você? E você não faz nada?

Eu não havia notado. Dalva Regina era uma das melhores alunas do curso. Formada em Economia, preocupava-se com as desigualdades sociais e admirava o trabalho que vinha sendo feito pela Sudene. Era filha de um almirante, presidente de um grande estaleiro, um enorme estaleiro. Eu conversava de vez em quando com ela como se fosse uma extensão da aula, e sempre a respeito de assuntos relacionados com o desenvolvimento econômico.

-- Você está maluco, Eduardo, não vi nada disso.
-- E você está cego! Deixa de ser bobo, rapaz. Casa com a Dalva!

Comecei a prestar atenção. De fato havia qualquer coisa de significativo naqueles olhares. Era impossível permanecer indiferente.
Avaliei bem a situação e os meus sentimentos, e afastei qualquer possibilidade de envolvimento. Voltei ao meu frango com polenta e ao vinho vagabundo. Eduardo voltou à carga:

-- E aí, pau de arara? Você acordou?

Confessei-lhe que de fato havia notado os sinais de aproximação, mas que iria ficar longe.
-- Deixa de ser idiota! Casa com a Dalva, rapaz, você vai ganhar um navio de presente de casamento!

A viagem chegou ao fim. No vôo de regresso o pequeno avião tornou-se imenso para os dez passageiros. Cada um sentou-se em um banco, longe dos demais, em silêncio. Pareciam todos enternecidos com o fim da viagem e com os laços que se haviam formado durante aquele convívio. Sentei-me também sozinho junto a uma janela, olhando as nuvens, pensativo. Dalva chegou e sentou-se ao meu lado.

-- Gostou da viagem? Pena que foi curta. O que é que você vai fazer amanhã?
-- Nada especial. Vou ficar dois ou três dias no Rio e voltar para Recife.
-- Posso lhe mostrar um pouco do Rio antes de você viajar? Você gostaria?
-- Gostaria!
-- Espero você amanhã, lá em casa, às quatro da tarde.

Deu-me o endereço e voltou ao seu lugar.
Fui pontual. Quando cheguei Dalva me esperava na varanda, sentada numa cadeira de balanço.

-- Você se incomoda se eu dirigir?

A sua pergunta tinha motivos: estou falando de uma época em que as mulheres mal começavam a dirigir automóveis.
Saímos. Ela atravessou o centro, chegou à Praça Saens Peña e tomou o caminho do Alto da Boa Vista. Ela sugeriu pararmos no Bar dos Esquilos. Lembro-me bem, ela pediu um whisky sour. Eu acompanhei. Continuamos a viagem com paradas na Vista Chinesa, na Mesa do Imperador, nas pequenas trilhas que serpenteavam pela mata.
Conversamos muito. Subdesenvolvimento, política externa, Cuba, Ligas Camponesas, imperialismo, dominação econômica, algodão versus fibras sintéticas. Ela nada perguntou sobre a minha vida pessoal.
Havia pausas, quando nos fitávamos longamente, sem uma palavra.

Lá embaixo as luzes começaram a piscar, delineando o perfil da cidade. Começamos a descer em direção à Barra da Tijuca.

-- Você ainda tem dinheiro?

Novamente é preciso explicar: Naquela época nenhum cavalheiro permitiria que uma mulher pagasse uma conta. Eu me havia preparado.

-- Então vamos jantar.

Ao chegarmos na baixada ela tomou a pequena ponte que leva ao restaurante da Ilha dos Pescadores. Ali ficamos, lendo o cardápio, sem pressa, recordando a viagem, rindo bastante e... suspirando.
Eu estava sorvendo um gole do Pinot Grigio que ela mesma havia escolhido quando, por um reflexo no copo, percebi que alguém se aproximava da nossa mesa:

-- Minha filha, você ...
-- Papai!
-- ... está aqui,... e eu preocupado ...
-- Mas eu avisei a mamãe que ia sair e para onde ia. Ela não lhe falou?
-- Sim, sim, está certo, está tudo bem, tudo bem ...

Assustado, levantei-me de sobressalto e bradei:

-- Almirante, o senhor não quer sentar-se, jantar conosco?
-- Não, não, muito obrigado, meu filho, bom apetite, boa noite, boa noite...

E, como chegou, se foi. Dalva não fez o menor comentário. Continuou sorvendo seu vinho em pequenos goles, intercalados por um olhar matreiro, como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo. Para mim, acostumado com as normas severas que sempre pautaram o meu trabalho e a rígida disciplina imposta no convívio familiar, aquilo era inusitado. Por um momento eu me senti como se estivesse raptando a moça, mas logo me recuperei e, considerando-me já íntimo do Almirante, continuamos a conversa com muita naturalidade. Eu sentia ternura na sua voz e comecei a ficar abalado.

-- Não está tarde para você voltar?
-- Quando é que você viaja?
-- Marquei para depois de amanhã.
-- Você não pode ficar mais alguns dias?
-- Não posso, tenho trabalho. Gostaria muito.
-- Você vai me escrever, não vai?
-- Vou, sim.

Nunca escrevi. Na pele do Severino Mandacaru eu andava preocupado em melhorar as condições de trabalho nas fábricas do nordeste, tarefa da qual a gloriosa revolução de 64 me liberaria, sem consultar-me. Indignado fui-me embora.
O tempo passou. Eu acabava de voltar do Chile e travava uma luta inglória para readaptar-me à nova realidade do país. Caminhando, de cabeça baixa, pela Rua do Ouvidor, ouço um grito vindo da outra calçada:

-- Spreafico!

Era o Eduardo, de braços escancarados, pronto para me abraçar.
-- Que fim você levou, seu nordestino falsificado, onde é que você anda, quanto tempo!
-- Ah!, estive no Chile, passei lá um tempão, casei, tenho dois filhos. E você, o que está fazendo?
-- Eu tenho uma editora. Também casei. .. Adivinha com quem?
-- ?????
-- Com a Dalva! Você não quis ... !

E soltou uma estrondosa gargalhada.

Luigi

4 comentários:

  1. Super história, muito legal. Apesar de enorrme, flui bem. Só não achei o títuloa dequado, está meio desconexo. Talvez também você pudesse encutar um pouco o início, demora muito a chegar à Dalva, como se o texto mudasse de tema aos poucos. sugestões...

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  2. Que tal o casamento de presente? Aceito críticas beijos!

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  3. Acho pobre: "Passaram-se muitos anos" e "um dia", eles habitam o mesmo parágrafo! Reescreva o parágrafo, você sabe escolher palavras bem melhores. Atenciosamente a enfadonha. Corrija onde está escrito Bar do jangadeiros. Não era Ilha dos Pescadores?

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  4. Obrigado, Paçoca, pelas correções. Vou proceder.
    Luigi

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