Jorge era argentino. Estava radicado no Brasil, há quatro anos. Radicado é um modo de dizer porque as raízes dele não passavam de uma nesga de musgo ao redor dos pés, o que não daria para sustentar nem um pé de salsinha. Mas ele vivia aqui e apesar desse tempo todo convivendo com os nativos, não conseguiu aprender uma só palavra de português, não se sabe se por incapacidade ou por indústria.
Jorge tinha tanto medo de ser considerado descendente de italianos, como é a quarta parte da população argentina, que fez juntar ao seu nome o tratamento usado pela nobreza britânica: Esquire. Nobre ou não, soube-se mais tarde que em Buenos Aires ele era chamado simplesmente de El Pelotudo.
Trabalhávamos na Fábrica Bangu, a velha e então famosa fábrica de tecidos que fazia desfiles de moda no Rio e em Paris, onde apresentava seus figurinos de puro algodão, desenhados pelos melhores estilistas , e seu organdi, único no mundo. Ser técnico da Bangu, naquela época, era quase como ser artista da Globo hoje. Era nesse ambiente refinado, cruzando com modelos lindíssimas, que Jorge desfilava seu charme escudado sempre atrás do seu indisfarçável castelhano italianizado. Por isso mesmo, e apesar do Esquire que lhe chegava em toda a correspondência, ele não escapou de ficar conhecido como Jorgito Puerraloca.
Além dos famosos tecidos, a Bangu produzia também jogos de futebol. Tinha criado o seu próprio time, sempre na primeira divisão. Tinha seu próprio estádio. A exemplo das universidades americanas, onde seus ídolos esportivos não precisam estudar para serem promovidos de ano, a Bangu dispensava do trabalho os seus craques que, claro, constavam da folha de pagamento. E foi aí que Jorge deu sua primeira mancada ou na sua própria língua, “metió la pata”.
No início do expediente, logo após marcarem o ponto, dois fiandeiros se apresentaram com um bilhetinho na mão para que ele assinasse a permissão de saída.
“Que? Estais borrachos, vos?
“É que nós precisamos sair para treinar. Vai ter jogo no sábado”
“Que? Para jugar a la pelota? Coños! Que se vuelvam a su trabajo y no me vengam mas con guevadas!”
E assim os dois foram despachados de volta ao seu trabalho, em nome da ordem, da disciplina, da dignidade, das boas práticas administrativas, uma empresa de capital aberto deve explicações aos seus acionistas e... tudo de acordo com o que o estudioso Jorge havia aprendido na escola.
Cinco minutos depois o telefone toca. Era o Silveirinha, diretor presidente, o grande empresário que havia construído aquele império que era a Companhia Progresso Industrial do Brasil.
“Escuta aqui, seu portenho maluco! Você quer acabar com a minha fábrica?”
“Em pleno Campeonato? Solta logo esses dois e daqui a dez minutos esteja na minha sala.”
A habilidade do Jorge para lidar com homens e máquinas nunca foi reconhecida na Bangu. Pudera! Suas verdadeiras habilidades se revelariam pouco tempo depois. A verdadeira vocação de Jorge Puerraloca, Esquire era lidar com cifrões.
Quando resolveu visitar a família em Buenos Aires, Jorge fez as contas. As passagens aéreas, naquela época eram caras, se comparadas aos outros meios de transporte. Jorge descobriu que fazendo o trecho Rio – São Paulo em ônibus economizaria bastante. Portanto comprou a passagem São Paulo-Buenos Aires, ida e volta. Faria o resto em ônibus, embora isto lhe custasse dois dias de viagem.
A ida foi normal. Na volta o aeroporto de São Paulo estava sem teto e o avião passou direto aterrissando no Rio. Qualquer pessoa que estivesse no lugar do Jorge teria ficado feliz; ganhara uma passagem São Paulo-Rio, além do tempo correspondente à viagem de ônibus. Mas não o Jorge. Começou a esbravejar ainda dentro do avião. Quando desceu, a notícia da sua fúria já havia chegado aos comissários de terra.
“Mijones de dólares me hacen perder estos cabrones. Yo tenía que estar em San Pablo” Que voi a hacer, por Dios!”
“Senhor, por favor, acalme-se. Vamos acomodá-lo em um avião que sairá dentro de meia hora e descerá em Congonhas. Lá o teto está aberto.”
Apanhado de surpresa, Jorge não se intimidou:
“Que? En esta condicion? Estas chiflado, che? Estoy aturdido, completamente traumatizado, imposible viajar en estas condiciones, ustedes no tienen alma, no, no, me pongam en um hotel, ustedes tendran por aí un Hilton qualquiera Que? Hotel Nuevo Mundo, no, no, estas loco, por favor, yo no soy ningun epiltrafa, y a lo demás... como? Copacabana Palace? Si, esse está bien.”
E o Jorge comeu e bebeu, e deitou-se nos finos lençóis de linho do Copacabana Palace às custas da Panair do Brasil e engrossou, com suas mijadas, o fluxo da cloaca massima do Rio de janeiro.
Quando Jorge me contou essa história eu imaginei que nesse ponto ele se considerasse realizado e feliz. Nem a mente mais engenhosa conseguiria encontrar uma forma de extrair mais leite daquela pedra. Eu ainda não o conhecia. Na manhã seguinte, Jorge Puerralocas, Esquire apresenta-se no balcão da Panair:
“Che, mirà, he resolvido mis problemas por cable, anoche. Perdi um montón de plata y ahora tengo que quedar-me acá . Ustedes me emiten un boleto Rio- San Pablo com fecha abierta y todo queda arreglado, como? si, si está bien, muchas gracias, saludos a todos.”
E assim Jorge ainda acrescentou alguns trocados ao seu patrimônio quando nem Belzebu imaginaria que isso fosse possível.
Jorge tinha tanto medo de ser considerado descendente de italianos, como é a quarta parte da população argentina, que fez juntar ao seu nome o tratamento usado pela nobreza britânica: Esquire. Nobre ou não, soube-se mais tarde que em Buenos Aires ele era chamado simplesmente de El Pelotudo.
Trabalhávamos na Fábrica Bangu, a velha e então famosa fábrica de tecidos que fazia desfiles de moda no Rio e em Paris, onde apresentava seus figurinos de puro algodão, desenhados pelos melhores estilistas , e seu organdi, único no mundo. Ser técnico da Bangu, naquela época, era quase como ser artista da Globo hoje. Era nesse ambiente refinado, cruzando com modelos lindíssimas, que Jorge desfilava seu charme escudado sempre atrás do seu indisfarçável castelhano italianizado. Por isso mesmo, e apesar do Esquire que lhe chegava em toda a correspondência, ele não escapou de ficar conhecido como Jorgito Puerraloca.
Além dos famosos tecidos, a Bangu produzia também jogos de futebol. Tinha criado o seu próprio time, sempre na primeira divisão. Tinha seu próprio estádio. A exemplo das universidades americanas, onde seus ídolos esportivos não precisam estudar para serem promovidos de ano, a Bangu dispensava do trabalho os seus craques que, claro, constavam da folha de pagamento. E foi aí que Jorge deu sua primeira mancada ou na sua própria língua, “metió la pata”.
No início do expediente, logo após marcarem o ponto, dois fiandeiros se apresentaram com um bilhetinho na mão para que ele assinasse a permissão de saída.
“Que? Estais borrachos, vos?
“É que nós precisamos sair para treinar. Vai ter jogo no sábado”
“Que? Para jugar a la pelota? Coños! Que se vuelvam a su trabajo y no me vengam mas con guevadas!”
E assim os dois foram despachados de volta ao seu trabalho, em nome da ordem, da disciplina, da dignidade, das boas práticas administrativas, uma empresa de capital aberto deve explicações aos seus acionistas e... tudo de acordo com o que o estudioso Jorge havia aprendido na escola.
Cinco minutos depois o telefone toca. Era o Silveirinha, diretor presidente, o grande empresário que havia construído aquele império que era a Companhia Progresso Industrial do Brasil.
“Escuta aqui, seu portenho maluco! Você quer acabar com a minha fábrica?”
“Em pleno Campeonato? Solta logo esses dois e daqui a dez minutos esteja na minha sala.”
A habilidade do Jorge para lidar com homens e máquinas nunca foi reconhecida na Bangu. Pudera! Suas verdadeiras habilidades se revelariam pouco tempo depois. A verdadeira vocação de Jorge Puerraloca, Esquire era lidar com cifrões.
Quando resolveu visitar a família em Buenos Aires, Jorge fez as contas. As passagens aéreas, naquela época eram caras, se comparadas aos outros meios de transporte. Jorge descobriu que fazendo o trecho Rio – São Paulo em ônibus economizaria bastante. Portanto comprou a passagem São Paulo-Buenos Aires, ida e volta. Faria o resto em ônibus, embora isto lhe custasse dois dias de viagem.
A ida foi normal. Na volta o aeroporto de São Paulo estava sem teto e o avião passou direto aterrissando no Rio. Qualquer pessoa que estivesse no lugar do Jorge teria ficado feliz; ganhara uma passagem São Paulo-Rio, além do tempo correspondente à viagem de ônibus. Mas não o Jorge. Começou a esbravejar ainda dentro do avião. Quando desceu, a notícia da sua fúria já havia chegado aos comissários de terra.
“Mijones de dólares me hacen perder estos cabrones. Yo tenía que estar em San Pablo” Que voi a hacer, por Dios!”
“Senhor, por favor, acalme-se. Vamos acomodá-lo em um avião que sairá dentro de meia hora e descerá em Congonhas. Lá o teto está aberto.”
Apanhado de surpresa, Jorge não se intimidou:
“Que? En esta condicion? Estas chiflado, che? Estoy aturdido, completamente traumatizado, imposible viajar en estas condiciones, ustedes no tienen alma, no, no, me pongam en um hotel, ustedes tendran por aí un Hilton qualquiera Que? Hotel Nuevo Mundo, no, no, estas loco, por favor, yo no soy ningun epiltrafa, y a lo demás... como? Copacabana Palace? Si, esse está bien.”
E o Jorge comeu e bebeu, e deitou-se nos finos lençóis de linho do Copacabana Palace às custas da Panair do Brasil e engrossou, com suas mijadas, o fluxo da cloaca massima do Rio de janeiro.
Quando Jorge me contou essa história eu imaginei que nesse ponto ele se considerasse realizado e feliz. Nem a mente mais engenhosa conseguiria encontrar uma forma de extrair mais leite daquela pedra. Eu ainda não o conhecia. Na manhã seguinte, Jorge Puerralocas, Esquire apresenta-se no balcão da Panair:
“Che, mirà, he resolvido mis problemas por cable, anoche. Perdi um montón de plata y ahora tengo que quedar-me acá . Ustedes me emiten un boleto Rio- San Pablo com fecha abierta y todo queda arreglado, como? si, si está bien, muchas gracias, saludos a todos.”
E assim Jorge ainda acrescentou alguns trocados ao seu patrimônio quando nem Belzebu imaginaria que isso fosse possível.
Eu sei que o que vou dizer nada tem a ver com o Jorgito, mas não me contenho:
Sempre achei que o Brasil deveria invadir a Argentina para seqüestrar o queijo parmesão deles. É muito melhor do que o nosso.
Luigi Spreafico
Luigi Spreafico
Luigi,
ResponderExcluirque delícia de texto. Engraçado e rico de coisas novas para mim. Tive que recorrer ao Tio Google várias vezes. Mas como sempre aprendi bastante com você, com destaque especial para "Cloaca Massima" que não fazia idéia do que era.
Seu texto vai me ajudar também a fazer a minha crônica para o mestre Felipe. Paçoca
cloaca maxima, o que é isso? (nem pergunto as outras coisas!)
ResponderExcluirnoronha
Lendo no blog do curso, desconfio que você estava inspirado na hora de escolher seu psudônimo... que o Felipe não nos ouça!
ResponderExcluirNoronha
Colegas, acrescentei uma frase ao último parágrafo da crônica.Uma bobagem, mas deixo o aviso.
ResponderExcluirLuigi