quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Vestígios


Deixo-a no portão de embarque do aeroporto Tom Jobim. Antes de sair do carro, nos despedimos com dois beijinhos e fico a observá-la andando com seus passinhos curtos e elegantes. Não é alta, nem baixa. Conserva o corpo esguio, a custa de muita ginástica, e os cabelos sedosos balançam sem esforço. É uma bela mulher de 54 anos.
Somos amigas há muitos anos, como irmãs, confidentes de sentimentos e segredos íntimos. No entanto, por um defeito da história, temos personalidades quase totalmente diferentes. Algum dia, o destino quis que nos encontrássemos e que desafiássemos a ordem das afinidades em comum, da mesma filosofia de vida, que permeia as grandes amizades. Preferimos declinar para o lado da física que preconiza que os opostos se atraem, assim seguimos, quase uma vida inteira.
Raramente, nos aconselhamos, pois de nada adianta, já que o certo de uma, é sempre o errado da outra. No entanto, o desabafo e as (in)confidências das duas é o elo do nosso companheirismo. Sabemos escutar e calar quando convém. Uma a outra. Também discordamos em quase tudo e brigamos, mas sabemos perdoar, pois estranhamente, assim nos entendemos.
Há tempos fomos morar em cidades separadas e isso nos causou uma grande angústia. Mas, graças a tecnologia e a facilidade de deslocamento da contemporaneidade, estamos sempre em contato.
Alguns anos mais velha que o marido, apesar de não parecer, minha amiga é extremamente ciumenta, e isso muito me incomoda. Desta vez que veio me visitar estava muito mal, pois mais uma vez, tinha “certeza” que ele a estava traindo com outra. Todos os indícios que me revelou, como sempre, não tinham o menor comprometimento com a sanidade. Aquela ladainha de suposições sempre me cansam, mas eu a escuto com paciência, pois, no seu íntimo, são verdades que insistem em assombrá-la. E o marido apaixonado sofre, mas se chateia.
Resolvi então contar-lhe um fato que sucedeu comigo, para que tentasse entender que nem sempre aquilo que pensamos ver, é vestígio da realidade.
-Margô ! Imagine eu andando pela rua com meu filho pequeno e meu marido numa tarde de domingo.
-Quando, de repente um numa janela de primeiro andar de um edifício, um rapaz de uns vinte e poucos anos, porte atlético e sem camisa faz – “Psiu, Psiu” pra mim.
Ela me olhou na expectativa do que eu iria falar.
- Olhamos os três para cima. Então, o rapaz primeiro acena, depois faz um gesto com a mão indicando que um de nós três cortou o cabelo. Finalmente com o polegar faz que ficou ótimo ! Termina dizendo, em mímica “ Passa lá” !
Minha amiga nesta hora já não agüentava de tanta curiosidade pra saber do que se tratava e eu continuei.
- Margô ! Eu tinha cortado o cabelo. Um dia antes. Meu marido não conhecia o rapaz e meu filho ignorou-o solenemente.
- Eu te pergunto, o que você faria se fosse meu marido ?
- Eu pulava em você e arrancava os seus cabelos. Disse ela com um riso nervoso, mas inquieta.
Então, deixa eu te contar a verdadeira história. Aquele era o professor de futebol do meu filho, quando ele era bem menor e usava cabelos compridos até os ombros. O rapaz gostava de brincar para que os cortasse e tinha muito carinho por ele, por ser o mascote da turma. Depois de umas férias, não voltamos mais e meu filho passou a fazer futebol em outro local.
- Oh, mas que coisa mais bizarra ! Disse ela.
- Mas porque seu filho então, ignorou-o solenemente ?
- Ele, simplesmente, por ser muito mais novo, não reconheceu o professor de que tanto gostava.

Creio que aliviei um pouco aquele coração assustado. Mas, mesmo assim, quis voltar logo para a sua cidade, a fim de não deixar o marido muito tempo sozinho.
Ciúmes...

6 comentários:

  1. Correção:
    * Mas por que seu filho, então ignorou-o solenemente?

    ResponderExcluir
  2. Querida Cláudia,
    É sem dúvida nenhuma uma belíssima crônica. Você com se jeitinho manso dá bem o recado. Sem contar que de quebra ainda fala com muita sensiblidade da amizade, sensibilidade de quem sabe ser amiga.
    Quanto ao problema do ciúmes, acho que existem dois tipos. Um são fantasias que o ciumento cria e que só ele acredita e que pode acabar mal.
    A outro tipo é um egoísmo de quem ama e de querer o amado só para sí. Sei Lá... Preciso pensar melhor.
    Quanto ao texto em si: não escreveria tão pertinho um do outro Há alguns anos e alguns anos...
    Também ouvi um professor dizer que agora usamos a grafia história para tudo, quando é história e também quando é Estória. Beijos da amiga Miranda!

    ResponderExcluir
  3. Parabéns, Claudia. Uma linda história para mostrar o que é a realidade de cada um. Com muito suspense, prende o leitor palavra após palavra até o desfecho.
    Luigi

    ResponderExcluir
  4. Claudia, que bela forma de falar do ciúmes e de como cada um convive com as situações da vida.

    Uma dúvida, na frase:
    "- Mas porque seu filho não ignorou-o solenemente ?"
    Não seria: "- Mas porque seu filho ignorou-o solenemente ?"?
    Acho que o 'não' ficou sem sentindo.
    O que você acha?

    Parabéns pelo texto e pela forma como você abordou um assunto tão complexo.
    Roseana

    ResponderExcluir
  5. Opaaaaa, depois que fiz o comentário é que vi a sua correção. Sorry, ficarei mais atenta da próxima vez.
    beijo,
    Roseana

    ResponderExcluir
  6. Queridos,
    Graças ao meu Mestre Luigi, editei as correções que vocês fizeram a gentileza em me apontar.
    Desconhecia este recurso e ficava colocando aqueles ateriscos ridículos, evidências dos meus erros.
    Beijos agradecidos

    ResponderExcluir