“A pessoa que termina de ler um livro
não é a mesma que o iniciou.”
(ouvi dizer)
Foi numa livraria de aeroporto, graças a um providencial atraso de vôo, que encontrei o livro que iria mudar minha vida. Não era um livro de autoajuda, daqueles que tentam lhe convencer que você está deprimido, que a depressão é uma doença gerada pelo estresse e que pra você não se estressar você tem que ler aquele livro direitinho até o fim e que deve ler também os anteriores, e...
que.... raios... Ao contrário, este livro despertou em mim energias adormecidas, reconciliou-me com a humanidade, levou-me a descobrir a harmonia que existe na natureza, o equilíbrio do mundo animal em sua luta pela preservação da espécie, com sua linda cadeia alimentar e, benção do céu, o fascínio de uma noite estrelada sem a presença da luz elétrica, marca indelével da presença do homem.
Li-o de um fôlego só durante a viagem, e quando desembarquei no longínquo Manaus – eu havia embarcado no também longínquo Porto Alegre – eu já levava nos miolos o projeto do que seria a minha vida dali para a frente.
“Meu Sítio, Meu Paraíso” . O título do livro me fascinou. O nome do autor fugiu-me da memória. Infelizmente, porque gostaria de saber o que ele anda fazendo agora. Nesse livro ele descreve como implantou seu sítio num meio inóspito, a sua luta contra todas as adversidades superando queimadas e vencendo formigas, atravessando secas e enchentes. Ele conta, com detalhes técnicos que viriam a ser de grande utilidade para mim, como efetuou o plantio de arvores, a construção de estábulos, o preparo do solo, a formação de um lago com sua cachoeirinha. Contagiou-me. A cada etapa da leitura eu vibrava e torcia por ele. O calor com ele descreve a cena da inauguração do lago que acabara de contruir, com champanhe e tudo, ao lado dos filhos e da esposa orgulhosa, então, encheu-me de lágrimas. Eu entendia isso. Era o seu sítio. Era o seu Paraíso!
Tratei de desincumbir-me o mais rápido possível do meu trabalho em Manaus e voltei correndo, quero dizer, voando.
Eu também daria aos meus filhos, ainda pequenos, e à minha esposa, ainda orgulhosa, essa alegria. Eu daria às crianças o seu cavalinho e, à esposa, as galinhas de que precisava para fazer seus ovos a-la-cock sem hormônios nem antibióticos. E, para mim, isto sim, concederia a glória de sentar-me britanicamente no fim das tardes , à sombra de um flamboyant, com meu gin tonic na mão, acompanhado de finíssimos canapés de pepino.
Saí à procura de um terreno. Encontrei o lugar, não muito distante da cidade. A topografia era perfeita: uma grande área plana, duas colinas em forma de meia laranja, uma pequena casa de madeira e, o mais importante, um riacho suficientemente caudaloso que permitisse a formação de um lago, ponto nuclear para unir a atividade agro-pecuária ao lazer. Com ele eu irrigaria as culturas, criaria peixes e, por que não, colocaria um barquinho para divertir as crianças.
Escolhi o ponto ideal para a barragem. Feitos os cálculos encomendei os materiais. Tudo pronto para começar a obra. Contratar um pedreiro? Não é necessário, tenho energias de sobra. Basta-me um ajudante que prepare as ferragens para o concreto e o Édio, meu recém contratado e já fiel caseiro que, apesar de cego de um olho, enxerga mais do que o chefe da repartição onde trabalho.
Mãos à obra e em pouco mais de seis meses a barragem estava pronta. O lago começou a encher. Quanta alegria! Acompanhar hora a hora, dia a dia, aquele processo lento da subida das águas, torcer para que caísse muita chuva, apostar com os filhos quem acertaria o nível da água no fim de tantos ou quantos dias, pesquisar se havia algum vazamento na barragem, descobrir se alguém estava desviando água rio acima, só quem viveu isso pode entender a satisfação que estas coisas proporcionam.
Gastei um pouco mais do que havia calculado, isto é , um pouco mais do que o dobro do que havia calculado, é verdade, mas o que é isso em comparação com o privilégio de contemplar aquele espelho d’água nos fins de tarde com meu copo de gin tonic na mão? Despesas? Ora, despesas...
Era tempo de preparar o bosque e o pomar. Espécies nativas: jacarandás, ipês, sibipirunas, aroeiras. E eucaliptos, muitos eucaliptos, aquela árvore milagrosa que veio da Austrália tão distante, indispensável para fabricar o carvão do churrasco. Preparei as sementeiras para os eucaliptos, e busquei nos hortos florestais as mudas para as demais árvores e fruteiras.
Das sementes nem todas germinaram e, das mudas, várias morreram, fosse pelos traumas sofridos durante a viagem, fosse pelo tempo que tiveram de esperar até serem plantadas. Claro, tudo tem sua vez. Mas consegui aproveitar quase a metade das plantas, o que não me deixou desanimado.
Chegou a vez da criação. Primeiro as galinhas. Disso cuidou o Édio que, com seu olho clínico, - mesmo sendo um só - sabia até quais eram as galinhas que poriam ovo naquele dia. Depois vieram as abelhas e disso eu mesmo cuidei, pois não podia me arriscar a perder o caseiro. Coisa linda, as abelhas! Que exemplo de laboriosidade com suas regras espartanas de consumo e seus padrões éticos de convívio! As muitas picadas que eu levava só faziam retemperar a minha disposição para o trabalho, ao qual eu me entregava com fúria redobrada.
Por fim vieram as cabras, introduzidas graças ao conselho de um diligente vizinho o qual me garantiu que elas manteriam o sítio roçado e assim eu economizaria na mão de obra para as capinas. Ele estava certo porque a partir dalí nunca mais vingou uma folha de grama naquela terra. As cabras roçavam também a parte inferior das fruteiras, ou seja, até onde alcançava o seu incrivelmente elástico pescoço. Não sobrava fruta. Assim, as laranjas, goiabas, carambolas e jabuticabas disponíveis passaram a ser colhidas com a ajuda de uma escada, o que aumentava ainda mais o nosso entretenimento. E eu achava engraçada a habilidade com que aquelas rústicas criaturas cuidavam do seu próprio sustento. E também pouco me incomodava se elas, com admirável virtuosismo, burlassem a cerca da horta para triturar couves e repolhos, pois isso me dava a oportunidade de estudar e desenvolver cercas cada vez mais seguras.
“Meu Sítio, Meu Paraíso”. Como eram agradáveis aquelas noites insones em que eu me debruçava sobre as plantas topográficas esquadrinhando o melhor percurso para abrir trilhas, localizar possíveis ninhos de cobras, esse ingênuo
Animal tão vilipendiado pelo homem, que nunca ataca ninguém a não ser que seja ameaçado, ou então esteja faminto, coisa freqüente na aridez daquela terra sáfara e maninha. E a emoção que eu vivi ao lado dos meus filhos ainda pequenos e da minha esposa ainda orgulhosa, quando voltamos do sepultamento da nossa cadelinha Chispa, atacada por um enxame de abelhas africanas que famintas, coitadas, invadiram o nosso apiário, na maior pilhagem da História depois do Rapto das Sabinas. Ninguém conseguiu conter o pranto pelo resto da noite. Foi aí que eu compreendi como é frágil a alma da gente.
“Meu Sítio, Meu Paraíso” . Lamento, mais uma vez, ter esquecido o nome do autor. Gostaria de agradecer-lhe pela felicidade que me proporcionou com a leitura do seu livro durante as quatro horas que durou aquela viagem e que gerou todos estes anos de fortes emoções. Gostaria de agradecer-lhe por tudo o que aprendi: vencer dificuldades, superar obstáculos, afastar o desânimo e tolerar a vingança da natureza quando ela é desrespeitada, como quando, por exemplo, fiquei atolado na estrada cheia de lama e insisti em atravessar assim mesmo, só porque eu tinha que voltar ao trabalho no dia seguinte, e fui obrigado a chamar dois tratores para me tirarem do atoleiro, o que, por sua vez, me custou quase o preço do carro atolado.
Bem, o tempo foi consolidando o meu amor por aquela terra que me consumia as entranhas. A certa altura as crianças começaram a mostrar enfado no seu contato com a natureza. O orgulho da esposa foi se transformando em comiseração. Eu ainda continuei com minhas tardes contemplativas à beira do lago mas fui substituindo, aos poucos, o gin importado por um gin paraguaio, depois por um whisky nacional e, finalmente, por uma caipirinha feita com a cachaça Jacutinga, a preferida de todos os caseiros que conheci na região, esta sim, pelo menos, uma bebida autêntica. Minha esposa, de tanto comer ovos a-la-cock sem hormônios nem antibióticos tomou tal enjôo por aquele alimento mágico que passou a distribuir os galináceos gratuitamente nos terreiros de candomblé.
Animado pelas caipirinhas e pelas lembranças do livro inspirador, responsável por tantas aventuras e momentos de enlevo, tomei a decisão de também escrever, não um livro, que a tanto não me arvoro, mas esta modesta crônica, que eu quero que se chame: Meu Sítio, Meu Prejuizo.
Luigi Spreafico
Prezado Luigi,
ResponderExcluirLi e gostei muito. Crônica muito bem humorada, bem escrita, com ritmo. Dei boas risadas imaginando o personagem tomando gin tônica e depois ficando com a caipirinha de cachaça do mesmo modo que foi do paraíso ao prejuízo.
Também acho interessante a idéia da felicidade dos outros,parecer que foi fácil. Quando na verdade para chegar ao gin tonica e contemplar o espelho é preciso trabalho duro e perseverança coisas que não aparecem na foto.
Tenho alguma as dúvidas. mas te pergunto pessoalmente! Miranda
Caro Luigi:
ResponderExcluirRuy Bueno de Arruda Camargo, este é o autor, fiz uma breve pesquisa e vi que ele publicou alguns livros é um médico cientista que se destacou e parece que a família em homenagem colocou o nome dele num neto, que chama-se Ruy Bueno de Arruda Camargo Neto, médico em Boston. Bom, esta foi apenas uma pesquisa no tio google de poucos minutos. Aproveitei a pesquisa e vi onde comprar o livro, encomendei na Estante Virtual. Quero ler, fiquei curiosa com tudo o que você contou. Jamais leria um livro com este título, mas se li uma crônica com o triste título "Meu Sítio, Meu Prejuízo" e gostei muito, então devo dar a chance para este livro também me conquistar.
Bom, você diz que o livro não é de auto-ajuda, porém, quando diz que aprendeu a "vencer dificuldades, superar obstáculos, afastar o desânimo e tolerar a vingança da natureza", você está falando de um livro de auto-ajuda, tudo bem que dedicado a quem quer montar seu sítio.
Agora deixando todo esse lero-lero que despejei até agora, gostei muito da crônica, mas confesso que deu um aperto de tristeza ao fim, vendo que o amor não persistiu. Uma pena, mas assim é a vida.
Um grande beijo com carinho da sua mais nova admiradora.
Roseana
Luigi,
ResponderExcluirConfesso que sua crônica foi uma injeção de ânimo para mim. Repleta de ensinamentos de como ultrapassar as adversidades sem perder o bom humor.
Ao contrário da Roseana, acho que o amor persistiu, o que acabou foi o dinheiro, e havendo o primeiro sempre se consegue resgatar o resto.
Gostaria de saber que dúvidas a Paçoca tem que só podem ser esclarecidas pessoalmente, ai que curiosidade...
Parabéns pelo texto.
Claudia
Queridos,
ResponderExcluirNa verdade, não tirei minhas dúvidas aqui publicamente com medo do Luigi dizer que eu desviei o assunto (vocês sabem ele andou um tanto rabugento com nossos comentários). Mas já que a Cláudia ficou curiosa vou perguntar e seja lá o que for!
- O que são ovos-a-la-cock?
- O que é o rapto das Sabinas?
- "aquela terra sáfara e maninha?
Bjs curiosos da Paçoca
Cara Miranda
ResponderExcluirObrigado pelas risadas. A minha intenção era exatamente exatamente usar a ironia com esse fim. Já não posso fazer o mesmo com a sua referência ao "magro rabugento". Não sei por que fui inventar esse slogan.
Querida Claudia
Estou preocupado com essa injeção de ânimo que você recebeu. Espero que você não saia por aí à procura de um sítio só para treinar a "como ultrapassar as adversidades sem perder o bom humor".Não pense que eu atravessei aquelas adversidades com bom humor. O bom humor eu só recuperei depois que me livrei do sítio e pude voltar ao meu gin tonic, dispensando o espelho d'agua.
Prezada Roseana
Com você estou mais preocupado ainda. Se esse livro lhe conquistar eu me suicido. Não quero ser responsavel pela ruina de uma família que produziu uma escritora tão talentosa como você e que se deixou desencaminhar por uma crônica de pura ironia. Você nunca teve sítio, não é mesmo? Dá pra notar. Eu também não tinha quando li o livro, daí a minha preocupação com você.Parabéns pelo trabalho de pesquisa,está ótimo, bem como as ilações que você tira. Quando você conhecer melhor os colegas da Oficina você vai ver que nem sempre se pode levar a sério tudo o que eles dizem.
Mônica do meu coração
Por favor leia os comentários anteriores antes de colocar o seu. Um suicídio já me basta.
Luigi, o incompreedido
Luigi,
ResponderExcluirFalou e falou, mas não tirou as dúvidas da Paçoca, que viraram as minhas também. Arf !!!
Beijos indignados, mas curiosos
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirQuerido Luigi, não quero que você se suicide, mas tenho que dizer que comprar este livro, foi uma tarefa familiar. hoje cedo fomos, eu e marido, até uma loja em Copa, para pegar o livro que eu já havia reservado. De posse do livro, vim no carro lendo alto para o marido poder escutar. Ambos estamos apaixonados pelo livro, pelo que fala o autor e queromos um sítio.
ResponderExcluirE agora? Suicídamos todos juntos?
QUanto às dúvidas da Paçoca que não foram esclarecidas, fui direto ao tio Google e para surpresa, logo na primeira dúvida, olhem o que surgiu.
- ovos-a-la-cock: as duas primeiras referências são direcionadas para o nosso blog, porém as seguidas falam insistentemente em pênis e ovos, o que me relembrou um post anterior onde falávamos de bilau.
- rapto das sabinas: novamente tio Google me ajudou. Vejam que interessante:
"Diz a lenda que, como a população era constituída só de homens, Rômulo organizou um festival a Netuno e convidou os sabinos, povo vizinho, com suas filhas e mulheres. No auge das festividades, os romanos raptaram as sabinas solteiras e viúvas, levando-as para Roma. Os sabinos, reunidos sob o comando de Tito Tácio, atacaram Roma e, com a ajuda de Tarpéia, conseguiram penetrar no Capitólio. Na batalha final, as sabinas, que já se haviam habituado à sua nova vida, interferiram para impedir a carnificina entre seus pais e maridos. Graças à intervenção pacificadora das mulheres, romanos e sabinos assinaram um tratado de paz."
- já sáfara e maninha significa: deserto,terra infecunda, estéril.
Bom, acho que é isso.
beijocas de uma tarde de sábado cinzenta.
Cara Roseana
ResponderExcluirSe eu soubesse que a minha crônica fosse causar semelhante desgraça não a teria escrito. Preciso falar com seu marido, antes que seja tarde. Parabéns pela pesquisa semântica.
Luigi
Ai meu Deus, Cheguei atrasada!!!!!!! Não dá nem tempo de assinar!!!!!
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