quarta-feira, 9 de junho de 2010

O Coronel e Eu



A vida como ela é. A vida, é como ela é, ou como a vemos? A vida é como a vemos ou como a fazemos? A vida é a vida que nos é dada. Porque de nada serve conjecturar sobre como teria sido a nossa vida se tivéssemos tomado esta decisão e não aquela. Porque não nos é dado controlar as emoções no momento de fazer opções. E porque de nada serve arrepender-se de decisões tomadas. A discussão filosófica sobre destino e livre arbítrio, razão e coração, amor e paixão, é uma discussão filosófica. O que resta é a vida como nos é dada. Então vivamos a vida como a vemos. Vivamos a vida como a fazemos. Vivamos a vida como ela é. Então, deixem-me que lhes conte a vida como ela foi.

Quem percorresse a pequena estrada de terra batida que ligava Recife a Olinda, ao chegar ao Varadouro, seria surpreendido pelo cheiro pungente de goiabas e cajus. Ali, bem cedo, caboclos curtidos pelo sol, sentados junto aos seus balaios, esperavam que a Fábrica de Doces abrisse as portas para entregar sua mercadoria. O amarelo vibrante das goiabas e o vermelho sanguíneo dos cajus criavam um quadro de Van Gogh.
O forte aroma das frutas na manhã úmida inundava o quarteirão e embriagava os sentidos para o resto do dia. No fim da tarde, um outro cheiro, ainda mais forte, emanava do prédio da fábrica indicando que a goiabada estava pronta. E este perfume, este sim, ficaria impregnado pelo resto da vida.

No Varadouro a estrada embicava para a esquerda, tornando-se estreita, e partia em direção à cidade de Paulista. Um nome simplório, para a cidade que era: duas grandes fábricas de tecidos, duas longas chaminés enfeitiçando o céu. A Igreja, a Maternidade, o Hospital, a Funerária, o Cemitério. Doze mil operários. Quatro teares por tecelã. E um dono: o Coronel.
O Coronel tinha muitas esposas e cada esposa tinha muitos filhos. O Coronel a todos provia e de todos cuidava, pois todos constituíam a sua família. Os filhos estudavam na Suíça ou na Alemanha conforme o gosto de cada um.
O Coronel construíra um império empresarial que não se limitava àquelas duas fábricas. Tinha também fábricas na Paraíba e em Minas Gerais, todas gigantescas. E duas redes enormes de comércio varejista: As Casas Pernambucanas no Sul e as Lojas Paulista no Nordeste.
As terras do Coronel ocupavam municípios inteiros, tanto em Pernambuco como na Paraíba. Nelas eram cultivadas extensas florestas de eucaliptos que forneciam o combustível necessário para movimentar as turbinas geradoras de energia elétrica, tanto para as fábricas como para toda a cidade. Tinham suas próprias estradas de ferro serpenteando por dentro daquelas matas. Lembro-me, com saudades, do apito dolente da locomotiva, no meio da noite, quando entrava na cidade.
O Coronel tinha também uma fábrica de pólvora que supria as necessidades do Exército Brasileiro. E tinha uma escuderia, onde criava os cavalos de corrida mais famosos do país. Quem não se lembra da égua Tirolesa, muitas vezes campeã, que se tornou mais célebre que a Greta Garbo? Os cavalos eram alimentados com aveia e puro mel, extraído dos apiários que circundavam as matas de eucaliptos.

Toda a cidade – e sua população – dependiam do Coronel. E o Coronel era magnânimo e justo. Cada operário tinha a sua casa, dotada de todos os serviços, com área proporcional ao tamanho da família. As casas dos gerentes e chefes de seção eram maiores e dispunham de um jardim e um quintal com muitas fruteiras. Meu pai era gerente das oficinas mecânicas, o que incluía a caldeiraria e as turbinas de energia elétrica.
As casas eram mobiliadas e, como parte disso, recebíamos, duas vezes por ano, um jogo de roupas de cama e mesa. Eram lençóis e toalhas estampadas com motivos florais, de cores alegres e brilhantes, que traziam o perfume do algodão puro, o barulho das máquinas, a voz das tecelãs e o apito da chaminé. Uma vez por semana recebíamos em casa lenha e carvão para a cozinha e, diariamente, uma caçamba de gelo para abastecer a “geladeira”, o refrigerador da época.
A poucos metros da nossa casa ficava a “Casa Grande”, residência do Coronel. Era um palacete de três andares em tijolo aparente, e linda arquitetura, no centro de um grande parque, cheio de árvores e bichos.

Não longe da minha casa morava também uma das esposas do Coronel. Tinha duas filhas: a Linda e a Mais Velha. Tinha também uma filha de criação, a Moreninha. Minhas irmãs fizeram amizade com elas brincando juntas quando pequenas, amizade essa que atravessou a adolescência. Aos dezessete anos eu acabei me envolvendo nessa amizade e comecei a freqüentar a casa atraído, devo confessar, mais pelo olhar sedutor da Moreninha do que pelo bolo Souza Leão que lá se preparava.
Os saraus se tornaram freqüentes e eu comecei a perceber que a Linda se aproximava de maneira cativante. Conversávamos muito, às vezes em companhia da mãe que me perguntava como eu andava nos estudos e sempre tinha uma palavra de incentivo. Um dia Linda me convidou para ir ao cinema. Aceitei. Na tarde seguinte um automóvel preto, cujo comprimento superava a minha noção de veículos automotores, parou na minha porta.
Cine São Luiz, no Cais da Rua da Aurora, aos pés da Ponte Duarte Coelho. O cinema está lá até hoje e, se procurarem bem, vão encontrar resquícios do suave perfume que ela usava.

Surgiu um namoro. Não sei como, porque só me dei conta disso quando começou a correr a notícia e todos aplaudiam o feliz encontro. Nessa altura eu havia completado vinte anos e estava prestes a terminar o curso técnico de indústria têxtil que fazia no Rio. Portanto eu passava o ano inteiro fora de casa para onde eu voltava nas férias longas de fim de ano, já que nas férias de Junho eu me trancava nas oficinas da escola para montar e desmontar máquinas.
Com o tempo notei que alguma coisa não encaixava. Eu não sentia encantamento naquele namoro. Apesar da longa ausência eu não sentia saudades. Sentia um apreço muito grande pela menina, seu olhar meigo, seus gestos lentos, sua conversa inteligente, mas aquela centelha que gera labaredas e devora os sentidos, essa não aparecia.
Naquele ano, eu andava concentrado nos estudos e não podia imaginar um namoro que terminasse em casamento, por maiores que fossem as perspectivas de uma vida confortável à sombra do Coronel. No Rio de Janeiro, fora os estudos, a minha ocupação era aprimorar a minha biografia com idas cada vez mais freqüentes ao Mangue. O Mangue! A cidade sagrada que não tinha dia nem noite. Ali aprendi muito. Na voragem do desejo eu via o sofrimento. Na subjugação do sexo eu via a humilhação. Numa palavra de carinho eu via o alento aflorar na expressão contraída de um rosto sem esperanças.

Novamente de férias e o namoro continuou molenga, insípido, sem promessas. Procurei dar a entender à Linda que eu me achava muito jovem para assumir qualquer compromisso sério. Esperei que a minha frieza pusesse fim a tudo sem causar maior sofrimento. Foi quando um dia, pela manhã bem cedo, o mesmo carrão preto parou na minha porta.
-- O Coronel mandou dizer que gostaria de falar com o senhor. O senhor pode ir agora?
Vesti-me às pressas, alisei os cabelos com meu pente Guarany e embarquei. Subi até o terceiro andar do palacete, seis lances de escada, numa viagem que parecia interminável . Cheguei a uma sala vazia que me pareceu do tamanho de um campo de futebol. Bem no fundo uma mesa de reuniões. Sentado à cabeceira, o Coronel, de terno e gravata. Eram sete horas da manhã.
-- Muito prazer. Sente-se por favor.
O Coronel olhou-me fixamente nos olhos:
-- Eu soube que o senhor está noivo da minha filha. Vamos marcar a data do casamento... 20 de Janeiro, está bem para o senhor?
Antes que eu pudesse responder qualquer coisa, como se eu pudesse, ( o que eu ouvi, na realidade, foi algo como: “senta aí quieto e come a tua sopinha” ) ele continuou:
-- O senhor está fazendo um curso de indústria têxtil no Rio, não é mesmo? Falta pouco para terminar, eu sei. Eu quero que o senhor visite a minha fábrica na Paraíba e me dê a sua opinião. O motorista vai pegá-lo amanhã às sete horas. Prazer em conhecê-lo, senhor Luigi.
Pensei esconder da minha mãe, que me esperava ansiosa, o que havia acontecido, mas não foi necessário porque eu só viria a recuperar a fala muitas horas depois.

Quando cheguei na fábrica, no fim da tarde do dia seguinte, fui recebido pelo diretor que transbordava uma alegria mal explicada:
-- Bem-vido à família, meu caro Luigi! Vamos jantar na Casa Grande. Mandei preparar o seu quarto, espero que você descanse bem. Se faltar alguma coisa é só tocar a campainha, o Mustafá fica de plantão a noite inteira. Amanhã eu lhe mostro a fábrica. Você pode perguntar o que quiser, para você não há segredos. Na quinta feira vamos fazer um passeio de iate. O Coronel mandou organizar um passeio de três dias, só para o pessoal da família. Você vai conhecer os coqueirais, as plantações de caju, os eucaliptos, as oficinas das locomotivas, tudo. E você vai conhecer muita gente da família.

O passeio foi feito. Depois vieram as visitas às escuderias, à fábrica de pólvora, aos matadouros. E vieram também as corridas de cavalos, nas manhãs ensolaradas do Hipódromo com champanhe, ternos de linho branco, saias curtas e chapéus coco. E os almoços. E os jantares.
Era tudo fascinante, mas eu comecei a sentir que o chão me faltava sob os pés. Eu não cabia naquele mundo, porque aquele mundo era grande demais para mim. Eu havia sido ensinado a trabalhar duro desde os doze anos de idade, pendurado no estribo de um bonde debaixo da garoa fria de São Paulo, escondido dentro de um capote muito maior do que eu e tendo como almoço café com pão ou, excepcionalmente, um sanduiche de mortadela, retirados da máquina do “Bar Automático“ por alguns tostões, na Avenida São João, bem perto do Edifício dos Correios. Decididamente aquele não era o meu mundo. Eu ali seria uma fraude.

Marquei um último cinema com Linda. Na saída tomamos um sorvete no Gemba, não longe dali, e nos sentamos no Cais da Rua da Aurora, onde podíamos contemplar o rio. Não fiz nenhum preâmbulo. Expliquei-lhe que não me considerava maduro para um casamento e não queria deixá-la esperando pelo meu amadurecimento, que poderia demorar muito. Seria injusto para ela e cruel para ambos. Por maior que fosse o seu sofrimento aquela era a única coisa honesta que eu poderia fazer. Algumas lágrimas, contidas com esforço, escaparam-lhe e rolaram pelo seu rostinho ingênuo. Minha alma sangrava. Entramos no carro e voltamos em silêncio. E em silêncio ficamos pelo resto da vida.
Logo depois escrevi ao Coronel. Numa longa carta expliquei porque estava “abandonando o iate”. Nosso relacionamento fora extremamente curto. Esperava não deixar mágoas. Não recebi resposta. Nem eu a merecia.

No dia seguinte embarquei num ônibus capenga que percorreu os quinze quilômetros de estrada de barro até a Praia da Conceição, uma praia deserta onde havia uma colônia de pescadores e mais nada. Eu já havia estado ali antes. Dormia num mocambo coberto com folhas de coqueiro e comia lagosta. Não porque eu tivesse uma aprimorada sensibilidade gastronômica mas simplesmente porque não havia outra coisa para comer. Fiquei ali totalmente só, em recolhimento respeitoso, até o fim das férias. E voltei ao Mangue com a consciência tranqüila de que não me havia aproveitado de ninguém.

Luigi

5 comentários:

  1. Querido Mestre,
    A história é forte, repleta de imagens bonitas. É uma memória sincera e deve ter sido muito difícil resgatá-la. O texto é longo, mas o leitor é levado com curiosidade até o fim.
    Acho que você poderia limpar o texto um pouquinho, tirando a grande quantidade de eueueueu que você escrev eu, por exemplo.O que você acha de fazermos esta faxina no próximo encontro? teríamos várias cabeças pensantes! Bjs da Paçoca

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  2. Paçoca
    Boa ideia. Se não ficar enfadonho para os demais, eu ficaria feliz.
    Luigi

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  3. Mestre,
    você por acaso sabe quem é o galã aí de cima? Eu ou o Coronel?

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  4. Mestre,
    Depois do comentário da Paçoca, não tenho mais nada a dizer e só posso concordar. Acho ótima a idéia da faxina, não só no seu como em outros. Isso ajuda muito o que escreveu.
    Quanto a foto, acho que é "Eu en Gamba", que minha amada Dorotéa me perdoe. Mas que Bello !

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  5. Querido
    Acho que no próximo encontro a gente tem muito a conversar. Tenho uma novidade para você e a Claudia babarem de inveja, a Marcia já sabe. E é baseado em minha última experiência literária que eu digo: o texto está ótimo, mas muito grande para um blog. Se não conhecesse o seu estilo e você, e estivesse visitando o blog de passagem, eu jamais leria um texto longo assim. Pena, porque é ótimo, ma o tamanho assusta.
    Nos vemos na quinta aí eu conto mais, me aguardem!
    beijo
    Monica

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