Nos meses de outubro e novembro de 2009 um grupo de malucos se encontrou em uma oficina de crônicas na Estação das Letras, sob a batuta do mestre Felipe Pena. O prazer de estarmos juntos foi tão grande que, ao fim do curso, entre chopes e batatas fritas, resolvemos prosseguir, mesmo sem saber onde isso vai dar. De lá para cá nos encontrando semanalmente para ler textos, nossos ou não, discutir literatura e falar da vida... E claro, beber alguma coisa, que ninguém é de ferro.
quarta-feira, 31 de março de 2010
Outono
A menina atravessou a rua correndo. Não podia perder o ônibus da escola novamente. Como sempre, custara a ouvir tocar o despertador e pulara da cama só no último instante, no limite do tempo possível. Corre para escovar os dentes, passa uma escova nos cabelos rebeldes, veste o que falta do uniforme, cata qualquer coisa para comer no caminho e voa escada abaixo. Na portaria mal dá tempo de cumprimentar Severino, seu cúmplice fiel há tantos anos. É graças a ele que volta e meia consegue assistir os primeiros tempos de aula: quando o ônibus dobra a esquina e ela não está na portaria é Severino quem chega pelo interfone. E lá vai Roberta, no seu ritual matutino: calça jeans, tênis e blusa sobre o corpo magro na porta da adolescência, xuxinha nos cabelos cor de mel, mochila nas costas e uns trocados para o lanche, chave da casa na mão e asas nos pés.
Roberta espia o relógio da cozinha. Ainda lhe restam alguns minutos para o café rápido de todas as manhãs. Enquanto aguarda a fervura da água, arruma mais uma vez os cabelos. Por que cisma em mantê-los tão longos? Prepara o sanduíche de sempre; volta ao quarto para pegar a bolsa. Dê relance olha a silhueta no espelho da porta: malditas reuniões, maldito espelho, maldita preguiça. Repassa com a agenda o dia que começa, confere os documentos preparados com tanto cuidado. Enquanto arruma a pasta atende o celular, que tocará insistentemente ao longo de todo o dia. Algumas anotações e o café, pão e queijo, escova de dentes e batom. Lembra-se do jantar planejado há tanto tempo, antecipa o prazer do encontro. Se nada der errado haverá tempo para outro banho.
Deixo a mesa da copa, enquanto ferve a água para o chá. Pela janela envidraçada observo os galhos das árvores cantarem com o vento: bela manhã de outono, manchas coloridas de folhas no jardim. Penso no tempo, no dia que começa. Nas pinturas que preciso terminar. Retorno ao chá. Arrumo o xale em torno dos ombros, afasto os fios que caem sobre o meu rosto. Aperto a caneca entre as mãos, enquanto caminho devagar para a varanda. Aconchego-me no banco da esquerda, como todos os dias. Fecho meus olhos sem pressa, lentamente sorvo o chá que aquece o meu corpo. Em breve ela chegará, e juntas decidiremos o que fazer com o resto do dia.
segunda-feira, 29 de março de 2010
CADA UM COM SUA LÍNGUA ou, a lingua de cada um
- Evadir-me eu? Não sou parvo!
- Os assassinos deveriam levar alguma coisa que os identificassem...
uma papoila à botoeira!
Este é o diálogo que inicia uma cena em uma peça teatral de Sartre, na sua edição portuguesa, quero dizer, de Portugal. Não me perguntem qual é a peça. Se descobrirem , me avisem.
Agora gostaria de citar um trecho da correspondência trocada entre Fidelino de Figueiredo*, o grande filólogo português e Sigismundo Spina, seu discípulo. Numa carta** ao Prof. Fidelino, que se encontrava em Lisboa e a quem chamava carinhosamente de “pai”, Spina relata um concerto ao qual assistiu no Teatro Municipal de São Paulo:
“O Prelúdio em Si Menor, de Bach, conquanto Stokowski metesse nele as garras, foi primorosamente executado.” ... ... “o pai se lembra, deve estar isso em “Lisboa de Ontem” - se não me engano - daquela nota de Garret- por ocasião da representação de “A Sobrinha do Marquês” ? Deviam ser os Castristas que, a certa altura, assuando a peça, ouviram a exclamação de Garret do alto do seu camarote:
“Pateiem, bárbaros!”
“Pois bem: foi o que me evocou o público que estava presente ao concerto:
“quanta patada!”
E mais, se quiserem se divertir: bolseiro, carota, canastro, extenderete, casal saloio. Mas tomem cuidado com os falsos cognatos.
*Fidelino de Fgueirdo , grande filólogo e professor de literatura, português, foi contratado em 1938 pela Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo para modernizar os estudos superiores de literatura.
** “Cartas de Fidelino de Figueiredo e de Sigismundo Spina” - Ateliê Editorial: Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes, 2009 – pg.58
Estamos no Rio de Janeiro. Vejam o que diz o Marques, português recém chegado, à Ivete. Marques era um técnico que foi trazido de Portugal quando eu trabalhava na Fábrica Bangu dos bons tempos. Enquanto a fábrica lhe arranjava a um lugar para morar ele ficou hospedado na minha casa. Eu, ainda solteiro, havia contratado a Ivete, uma esbelta e bonita porta estandarte, para cuidar da casa.
Ivete limpava e arrumava tudo, preparava o almoço e o jantar, mas não dormia no emprego. E o Marques, com sua voz de barítono:
- Oh, Ivete! Não deitaste cebolas na salada, pois não?
- Oh, Ivete, que fizeste das minhas piugas? Não as percebi, esta manhã.
- Que raios preparaste para o jantar, oh! Ivete? É isto um sarrabulho, dizes tu? Parece mais uma champana!
Ivete o olha espantada, cai na gargalhada, e dá de ombros.
Eu tomava cerveja regularmente, na hora do jantar. Sempre a oferecia ao Marques e ele sempre a recusava. Um dia perguntei-lhe:
- Marques, por que você não toma cerveja?
- Porque não gosto, pois. - a sua lógica lusitana deixou-me encabulado.
- Mas por que você não gosta? - insisti.
- Não me sabe bem. - eu já me sentia derrotado. Tentei um último golpe:
- E por que não te sabe bem?
- Porque é muito amarga.
- Ah! Gritei eu triunfante. Se é por isso resolve-se facilmente.
- Oh! Ivete, corre lá embaixo e traz uma Malzbier para o Senhor Marques.
Sirvo a cerveja doce. Marques a experimenta e eu esqueço o assunto. Ele termina o jantar, retira-se e eu permaneço sentado digerindo os meus pensamentos.
Ivete chega para tirar a mesa. Vê o copo de Marques ainda cheio e pergunta:
- Ué, o Marques não gostou da cerveja?
- Não Ivete, pode retira-la.
E Ivete, colocando as mãos na cintura e balançando aqueles quadris que Deus lhe deu:
- Eu, hein, é a primeira vez que eu vejo um português enjeitar preta!
Essa é a nossa língua, é a língua de todos, é a língua de cada um. Ou não é?
Mas vamos ver como falam os Severino de Pernambuco e os Raimundo Nonato do Piauí. São apenas frases soltas, não quis construir um diálogo.
“Se avexe, menino. Fica aí encangando grilo o tempo todo, vai chegar atrasado outra vez.”
“Ele é rico que só! Dá de um tudo pra mulher dele e ainda sobra pra rapariga.”
“Arrodeia o oitão que você vai encontrar a bica que está com o pitoco quebrado”
“Fique aqui com estas flores, que eu vou ter que sair. Quando os noivos passarem, você avôa em cima deles.”
“Tenha vergonha, seu safado! Mulher de homem não se amulega!
“Você vem me falar de moral? Você, que passa a noite chumbregando com piniqueiras?
Não quero encerrar estes rabiscos sem, antes, dar mais um exemplo da linguagem do Nordeste. Se me perguntassem o que eu considero o poema mais bonito da literatura brasileira eu daria esta simples estrofe:
“Se eu soubesse que eu chorando
Empato a tua viagem
Meus olhos eram dois rios
Que não te davam passagem”
Pois é, nem a praga da televisão que, como disse Marx, é o ópio do povo, conseguiu aproximar as duas línguas. E eu aqui, queimando a mufla, pra descobrir se auto estima é junto ou separado, se tem hífen ou não, que hífen, além de um n estranho tem acento, se ambígua perdeu o trema ou se não tinha, se ...
Ora, francamente!
quarta-feira, 24 de março de 2010
O plebiscito, O recalcitrante e a Ignorante!!!
Tem dias que encasqueto com umas palavras. Outro dia assistindo a uma entrevista do simpático músico Lenine, ele disse que o pai dele tinha fleuma. Pronto! A princípio me bateu uma inveja. Será que meu pai tem fleuma? Será que não? Afinal o que é fleuma?
Faz um tempão que não ouço ou leio esta palavra: F L E U M A. Até graficamente é uma palavra esquisita. Vou poupar o distinto leitor, que como eu, não sabe o que é fleuma, de ir consultar no dicionário. Não é preciso ter vergonha, se você já sabe, pule o parágrafo seguinte e, se não sabe, vai saber e ninguém vai saber (que você não sabe).
Trata-se de um substantivo feminino e diz-se do caráter de uma pessoa calma, impassível; pachorra. Sinônimos: amenidade, brandura, doçura, mansidão, mansuetude, quietude, serenidade e suavidade.
Assim não ignoro mais o que venha a ser fleuma, mas continuo com inveja do músico. Meu pai tem um monte de qualidades e a fleuma não é uma delas.
Vem de longe essa minha mania de encasquetar com as palavras Lembro-me do papel cheirando a álcool, do texto, fresquinho, mimeografado, com carinho, pela professora primária. Textos curtos, em geral contos e crônicas que tinham a intenção de nos seduzir ao mundo da leitura. Dois textos que conheci nesta época, trago na memória até hoje. Justamente por conterem palavras encasquetantes.
Um deles é uma crônica do Drummond chamada “O recalcitrante” e conta a história em que numa viagem de ônibus um passageiro, se ofende quando é assim chamado. Ofende-se, sem nem ao menos saber o que é recalcitrar. E fique sabendo o leitor que ele vinha recalcitrando a viagem inteira.
O outro é um conto de Artur de Azevedo chamado "Plebiscito”. Um menino de doze anos pergunta ao pai o que é plebiscito. É na insistência do pai em fingir saber, que vem o retrato sutil e bem humorado de toda uma época, onde o Pai de família era o todo poderoso. Um "verdadeiro herói" que provia tudo e tinha que saber de tudo para não perder a moral.
Falei tanto em pai, pai do Lenine, meu pai, pai de família que lembrei do meu avô pai de minha mãe. Um tipo irlandês de pele e cabelos vermelhos, olhos azuis e temperamento irascível. Meu avô parecia o personagem do "plebiscito".
Logo que eu entrei para o ginásio, a professora pediu que entrevistássemos algumas pessoas e perguntássemos o que é ciência. Eu ia dormir na casa dos meus avós neste dia, e tomei o cuidado de fazer a entrevista com minha tia, que era professora e na opinião dos meus doze anos devia saber de tudo. Tinha um medo danado do meu avô e não perguntaria a ele por nada. Acontece que minha tia não sabia definir o que é ciência, mas não quis me dizer. Esperta disse:
- Pergunte ao seu avô! Eu não tive jeito.
-Vô o que é ciência?
O velho pigarreou, levou a mão à boca, deu uma tossidinha e não disse que não sabia! Com um ar irritado disse que levaria um tempo para dar uma resposta que eu pudesse entender! Com toda certeza meu avô também não era uma pessoa fleumática!
terça-feira, 23 de março de 2010
INGRESSOS COM LISBOA, NA FAISCA
“Em que posso servi-la, senhora?
“Dois ingressos para “A Casa de Bernarda Alba”
A Faísca ficava na Rua da Palma, uma rua de comércio importante naquele Recife entrecortado de águas que faiscavam sob o luar como veios de prata.
Alí estava também a Vianna Leal, primeira loja a inaugurar uma escada rolante, prodigiosa invenção da engenharia destinada à elevação do ser humano. Havia lá, ainda, a Mesbla, que fora filial da francesa Mestre & Blaget e agora era sua proprietária, num processo inverso de canibalismo, onde a cria devora o seu criador.
O Recife daquela época era romântico. Apoiado na amurada do Cais José Mariano, eu esperava que o sol no poente incendiasse a Praça Joaquim Nabuco. Então, as sombras dos edifícios se projetavam sobre o rio Capibaribe, transformando-o numa imensa placa de chumbo.
A Faísca era um misto de chapelaria e tabacaria mas, oficialmente, era uma tabacaria. Que, entre charutos e chapéus, vendia, com exclusividade , os ingressos para os espetáculos do Teatro Santa Isabel. Em todos os anúncios comerciais e cartazes do Teatro Santa Isabel, fossem Concertos, Óperas, Peças de Teatro, você encontraria, em destaque:
“Ingressos com Lisboa, na Faísca”
Lisboa conhecia os freqüentadores habituais do Teatro Santa Isabel; reserva-lhes os lugares preferidos, alertava-os sobre temporadas especiais e sobre a presença de possíveis desafetos políticos em noite de estréia.
O cenário teatral, naquela época, era dominado pelo Teatro de Amadores de Pernambuco, fundado por Waldemar de Oliveira, que organizara um elenco baseado nos membros de sua família, a maioria deles, médicos de profissão.
Nas noites de ensaio o Teatro Santa Isabel exercia um fascínio todo especial, principalmente sobre aqueles que acreditavam na lenda do “louro do Santa Isabel”, um fantasma que aparecia para perturbar os atores quando não gostasse de alguma coisa. Nas coxias, maquinistas, carpinteiros e contra-regras não falavam de outra coisa, contaminando os atores que, assustados, procuravam, em vão, saber de detalhes.
E aqui entra a parte mais interessante destas recordações. No Recife havia também o “Teatro Adolescente”, formado por um grupo de jovens estudantes que se proclamava “alternativo”, o qual resolveu montar uma peça de um autor mais alternativo ainda: “A Grade Solene”, de Aldomar Conrado, que iniciava sua carreira de teatrólogo com uma idéia genial: transpor a tragédia grega para a realidade nordestina através de “Édipo Rei”, de Sófocles. Assim, numa casa de engenho cercada de árvores ressecadas pelo sol da caatinga, João é o Édipo que casa com sua própria mãe Ester (Jocasta) , é irmão e pai, ao mesmo tempo, dos seus filhos, e mata o pai, o negro Antonio Campos (Laio). A crítica teatral se dividiu entre arrasadora e fulminante. Contudo foi unânime em elogiar os cenários desenhados por Aloísio Magalhães, o grande designer, responsável pelos melhores logotipos produzidos no Brasil, entre eles os da Light, Banco do Brasil, e CCPL, que estão aí até hoje.
Fui convidado para fazer uma ponta, cuja fala tinha duas linhas. Eu representava um matuto fogoió que entrava no palco, esbaforido, precedido por um tropel de cavalos produzido por duas quengas de coco e, interrompendo o ator que estava falando, declarava solenemente:
“Eles são bons rrrrrrealmente. Até que um dia o negro foi encontrado com uma faca enterrada no coração, logo depois da porteira” Dito isso, eu saia de fininho. Sentia-me ridículo. E nunca descobri porque eles eram bons rrrrealmente.
Na noite do ensaio geral a montagem dos cenários atrasou e os trabalhos se prolongaram pela madrugada. Sentados em círculo no meio do palco, sob a forte luz dos spots, os atores esperavam, conformados, conversando sobre as emoções da estréia.
E a conversa acabou recaindo sobre o fantasma do Santa Isabel. Por muito tempo não se falou de outra coisa, até que, Aldomar Conrado, o mais sensível, determinou:
-- Olha pessoal!, vamos mudar de assunto que eu já estou ficando com medo.
E foi aí que me ocorreu a grande idéia. Yara Lins, atriz de corpo imponente, fazia o papel da suposta Jocasta e usava uma túnica branca que lhe chegava aos pés. Saí discretamente do lugar onde estava na roda, alcancei as coxias e recolhi a túnica da Jocasta. Contornei o corredor da platéia e subi até as galerias.
Por um momento contemplei, lá do alto, a cena deslumbrante do teatro vazio com os atores sentados no chão do palco fortemente iluminado. Subi até a última galeria, a cabeça quase batendo no teto. Com a penumbra envolvendo as galerias, quem olhasse do palco àquela distância, juraria que a figura branca flutuava no espaço, tentando ultrapassar o teto.
Abri os braços em forma de cruz e esperei que alguém me visse. Nada.
Comecei a mover os braços, primeiro lentamente, depois com maior rapidez e finalmente girando-os como as pás de um moinho a vento, ora num sentido, ora noutro. Nada. Comecei a lamentar a falta de atenção daqueles colegas. Atores são seres distraídos, mesmo. Meus braços já estavam doendo. Descansei um pouco. Abri novamente os braços em forma de cruz e gritei:
“Uh... Uh... Uh... UUUUUUUUUUUUU!”
Vi gente sair voando do centro do palco e aterrissar nas coxias. Vi gente se ajoelhar, encostar a cabeça no chão e tapá-la com as mãos. Dois ou três permaneceram quietos olhando as galerias, espalmaram a mão na testa apurando melhor a visão, e dispararam aos berros pelo fundo do palco.
Voltei, mais assustado do que eles. Aldomar, a cabeça apoiada num travesseiro, estava sendo massageado nas têmporas por Yara Lins, com cinco copos de água em volta, à espera de que ele conseguisse beber. Apontando um dedo para o meu nariz, balbuciou, gaguejante e trêmulo:
Seu galego safado, esta você me paga!
“Ingressos com Lisboa, na Faísca” . . .
Luigi Spreafico
domingo, 21 de março de 2010
Segredo bem Guardado
Café com leite bem açucarado, como tu gostas. O pão, molhado de manteiga, posto na torradeira para estar quentinho quando o comeres. Uma banana, pois pela manhã, as frutas vão muito bem para a saúde. Cuido de ti com carinho. Quando acordas,os primeiros olhos que vêem o teu olhar são os meus. Bem de perto, minha boca está pronta para o teu beijo matinal. Se quiseres me amar, é só estender os braços e me alcanças em ti, pois já me encontro a um passo do teu gozo.
Levantas e me esqueces em carências, tão sempre pleno desta tua dureza. Golpeias-me de indiferença. Sofro da certeza, de que nunca mais me amarás com paixão novamente. Sou, hoje, como uma laranjada, um notebook, uma gravata. Partes do seu cotidiano, escandalosamente pacato e previsível. Chegar em casa e não me encontrar é como abrir a geladeira e não ter água para beber.
- Cadê a água gelada? Reclamas, sem o pudor de abastecer o recipiente. Bebes a água do filtro.
- Cadê sua mãe ? Perguntas aos nossos filhos, sem ao menos querer saber se me escondo, em algum lugar, para fugir da tua monotonia.
No carrinho do supermercado, o arroz integral, a carne branca para ti e a vermelha para os meninos, o leite de soja para a minha menopausa que não demora chega, os legumes frescos que demonstram a vida saudável que levamos. E que vida ! Almoço, a tarde as tarefas de todos os dias, e os meus tristes ais pelo caminho.
Todas às noite chegas do trabalho, a porta se abre, me beijas olhando para o teto, as mãos ocupadas com os mesmos quatro enfadonhos pãezinhos, que comemos, acompanhados com suco de uva. Tomo banho depois da novela, e me apreço em deitar ,para que venha logo o outro capítulo da minha história, pois este já não posso mais suportar. Antes de dormir, te refrescas em mim. Sempre comedido, a aparar os meus quereres, as minhas vontades, sem esperar o meu tempo.
- Boa noite homem de bem. Durma o sono dos justos, dos perfeitos. A vida da tua mulher e dos teus filhos está assegurada, nada abalará esta tranqüilidade.
Amanhã me vestirei como sempre, com roupas que não demonstrem aos outros as minhas aflições femininas. Por fidelidade e gratidão, tenho que ser só tua, mas temo que percebam que, num descuido meu, podem arrebatar-me de ti. Nenhum decote, nada que cole a minha carne e porventura a estremeça, vestes largas, cabelos presos, para que não se assanhem ao vento, dando-me ares mundanos. Assim consigo que o acaso não me invada e me encontre privada de afetos.
Nossos planos de quando nos casamos, continuam de pé, firmes, como rochas taciturnas, a nos vigiar. Sairias para ganhar o dinheiro da rua , e alcançaríamos o mundo que imaginávamos conquistar. Eu, cuidaria da casa, dos nossos filhos, traria a alegria e o bem estar ao nosso lar, apoiando os seus projetos, os seus desígnios que pensava serem os meus.
Mas, algo saiu do controle . Fui pega desprevenida pelos meus sentidos. Passei a ter desejos de beijos apaixonados, de abraços de tirar o fôlego, de noites inteiras de amor ardente. Minha volúpia foi intempestiva. Este é o meu segredo, que pretendo sufocar para sempre.
Claudia Bontempo
domingo, 14 de março de 2010
AMOS ATOS OBDOS
... ... ... insistimos com Vv. Ss. para que a mercadoria em questão seja despachada com a brevidade possível, acompanhada da respectiva factura. Nada mais temos registrado, para o momento, em nossos archivos. Somos, como sempre, de Vv. Ss.,
Amos. Atos. Obdos.
Severino & Mandacaru, Corp.
terça-feira, 9 de março de 2010
Seu sítio, meu descanso
Lamento não ter me despedido pessoalmente, mas tudo aconteceu tão de uma hora para outra que mal tive tempo de arrumar minhas malas. Saio hoje em viagem para um longo descanso: finalmente encontrei o lugar que precisava. Chama-se Pousada Meu Sítio Meu Paraíso, de propriedade de um senhor muito distinto chamado Luigi Spreafico. Não sei se o sobrenome é esse mesmo, parece que ele é italiano ou algo assim, mas não importa. Encontrei o anúncio da pousada na internet, liguei e conversamos longamente. Sabe que ele quase me convenceu a investir as minhas economias comprando um sitiozinho? Foi o que ele fez quando se aposentou e nunca se arrependeu. Por sorte ontem era dia de trazer novos hóspedes e ele me aceitou sem ressalvas, apesar da prioridade na atual temporada ser para famílias com muitos filhos. Como vê, certas coisas me perseguem. Mal posso esperar para conhecer o Paraíso!
Vocês tinham toda a razão, meu velho. Depois do vexame no baile da Terceira Idade e do fracasso da Portela na avenida eu andava mesmo insuportável. Mas convenhamos, ninguém agüenta aturar tanta gozação ao mesmo tempo! O Joca mais o Arnaldo passaram dos limites com os seus comentários insistentes sobre o fora que levei da Deusa naquele maldito baile. Que culpa tenho eu se uma dama não sabe mais aceitar a cortesia de um cavalheiro? Se me ofereci para levá-la em casa depois da briga com o namorado grosseirão foi porque nenhuma mulher merece ser tratada daquela maneira. Precisava jogar as flores na minha cara e me chamar de velho sem vergonha? O que ela pensou, que eu fosse agarrá-la a força no meio do caminho? Ora convenhamos, ela não conhece o Valdomiro. Se tem uma coisa que aprendi em casa foi a ser cavalheiro. Agora, sobre a Portela, deixa para lá, não vou perder o meu tempo falando o que todo o mundo já sabe... Ficção científica na avenida?
Voltando às férias. Nem imagina como foi difícil encontrar o lugar que eu queria! Sabe aquele site que você me indicou com uma lista de pousadas em Friburgo (HTTP://www.hoteis-pousadas.com.br/friburgo)? Pois é, olhei tudo e não encontrei nada. Parece que os donos combinam de fazer tudo igualzinho: pensão completa com 54 tipos de comida, café da manhã com hora marcada, charrete, vaquinhas, cavalos e lago com patinhos. E eu quero lá saber dessas coisas? Para que eu quero 54 tipos de comidas em cada refeição se só tenho um estômago? E para que vaquinhas e patinhos? Depois da creche não quero nem ouvir falar em bichos! Bom mesmo é poder acordar à hora que eu quiser, tomar a minha média com pão e manteiga e sair para caminhar sem rumo. Sem rumo, sem televisão, sem telefone, sem essa maldita internet. (Sabe a última do Joca? Passa horas jogando Poker no computado (http://www.pokerstars.com/br/)! E a Maristela, não fica um dia sem olhar as receitas da Ana Maria Braga (http://receitas.maisvoce.globo.com/). Eu não quero nada disso. E já decidi: quando voltar vendo o maldito computador e vou reativar o meu jardim. Plantar rosas e papoulas, é tudo o que eu preciso agora!
Cheguei ontem a noite aqui no sítio. Estradinha difícil, viu? O carro de bois demorou umas cinco horas para fazer o trajeto. Isso depois das quase três na estrada de asfalto. Pelo menos o ônibus é confortável e o motorista foi muito atencioso comigo, outro teria logo perdido a paciência com as tantas perguntas que eu lhe fiz. Imagina que ele nunca havia ouvido falar da pousada? Mas me deu umas boas dicas de restaurantes pelas redondezas (http://www.restaurantesnet.com.br/restaurante/6993/1/nova-friburgo-rj.html), ele é daqui mesmo e nas horas livres trabalha como guia turístico. Assim também me recomendou alguns passeios (http://www.friburgoturismo.com.br), parece inclusive que tem uma queijaria-escola magnífica por aqui (http://www.queijosfrialp.com.br/). Você sabe, eu adoro queijos.
Enfim, querido Bela, acho que encontrei meu lugar de descanso. Ainda não vi os outros hóspedes, me apressei em lhe escrever essa breve carta porque o correio mensal passa por aqui hoje cedo, se eu perdesse essa oportunidade só daqui a quatro ou cinco semanas. Os donos me explicaram que não tem dia certo, eles levam as cartas para a cidade quando lhes dá na telha, assim fica tudo ainda mais rústico. A única coisa que lamento é aqui não ter apiário, adoraria me lambuzar de mel fresquinho, recém tirado da colméia!
No mais, fico por aqui. Não adianta tentar me responder, porque sua carta não chegaria a tempo. Mande minhas lembranças a todos e a todas. Na volta conto as novidades pessoalmente.
Um grande abraço do seu,
Vavá
segunda-feira, 8 de março de 2010
Minha Bisavó
Pretendia escrever sobre o dia Internacional da Mulher, emancipação, liberdade e essas coisas que nos últimos tempos gritamos por aí a fora. Mas, passei tanta roupa que até desanimei!
Resolvi então falar sobre minha bisavó: Dona Regina. Não tinha mais que um metro e meio de altura. Era um tipo mignon, como se costuma dizer. Criou cinco filhos, era órfã de mãe e tinha uma madrasta, que nos dias de hoje só se encontraria nos livros infantis de contos de fadas.
Não convivi muito com a “Bisa”. E, a última vez que a vi, foi no meu casamento. Usava um vestido de crepe verde água, bem da cor dos seus olhos. Parecia ainda mais frágil, mas trazia no olhar um brilho de felicidade e orgulho por estar casando uma bisneta.
Nunca a vi reclamando da vida, da sorte, de cansaço. Não fazia coleção de sapatos, nem tampouco de bolsas, não vivia no salão de cabeleireiros retocando sobrancelhas, unhas, buço, pintando cabelos. Usava pó de arroz, lavava o cabelo com sabão de coco, fazia as próprias roupas e a comida.
Se, sabia que os bisnetos iam visitá-la colocava o amendoim para torrar, tirava-lhes a casca, levantando a peneira de taquara e soprando-os no ar. Socava num pilão até virar paçoca. E depois guardava numa latinha usada de ovomaltine. Foi proibida pelos médicos de fazer este esforço, mas não me lembro de faltar paçoca, feita por ela, em minhas visitas.
Quando vinha a Copacabana, na casa de uma de suas filhas, não ia embora sem nos fritar deliciosos pastéis da massa que ela mesma fazia. Lembro também, salivando, do biscoitinho de nata. Ia juntando pacientemente a nata que se formava no leite até ter quantidade suficiente.
Apesar de nunca ter trabalhado fora, a Bisa, no fim da vida, já viúva, se sustentava fazendo crochê. Nunca entendi como, daquele tamanhinho era capaz de fazer colchas de crochê enormes, ponto por ponto, numa perfeição inacreditável.
Guardo com muito carinho a imagem daquela mulher de aparência frágil, corajosa e trabalhadora.
Hoje é o dia Internacional da mulher seja ela qual for: Trabalhadora ou não. Parabéns e flores para todas nós.
domingo, 7 de março de 2010
POUSADA PARAÍSO
A vida nas grandes cidades está levando o ser humano a um desgaste físico e emocional sem precedentes. A insalubridade pela contaminação do ar, o barulho do trânsito, as sirenes e alarmes de todo o tipo, a dependência da televisão com seu noticiário estressante ou novelas lacrimogêneas e programas deformadores de comportamento, a alimentação baseada em produtos refinados repletos de gorduras saturadas, conservantes e aditivos químicos de toda a espécie, são apenas alguns dos fatores que estão afetando a qualidade de nossas vidas e, pior, a vida de nossos filhos. Para fugir a esses efeitos muitas pessoas procuram sair da cidade grande, nos fins de semana, em busca de um hotel fazenda para descansar e distrair a criançada.
Para isso criamos a “Pousada Meu Sítio Meu Paraíso”
Você já visualizou um lindo lugar com vaquinhas pastando, porquinhos fazendo honk... honk... crianças alegres e ruidosas jogando totó, longos passeios de charrete, lago com pedalinho, quadra poliesportiva, sala de jogos e um enorme salão para o Buffet self service com 54 tipos de comida. Pois nós não temos nada disso. Porque é de um lugar assim que você volta ainda mais estressado.
Ao criar a “Pousada Meu Sítio meu Paraíso” no local que você já conhece, palco de tão ricas experiências, queremos lhe proporcionar um lugar que permita retomar o contato com a natureza, reeducar seus hábitos alimentares e refazer as energias físicas e mentais para a sua volta ao trabalho.
Este é um lugar diferente. Para começar, você não precisa acordar às seis horas da manhã para assistir a ordenha das vacas. Nós não temos vacas. Você pode acordar à hora que quiser, tomar café à hora que quiser e ficar na cama ouvindo o canto dos pássaros.
Nós não temos charrete, nem passeio a cavalo. Nós preferimos caminhar com nossas próprias pernas para exercitar o corpo e a mente.
Nós não temos quadra poliesportiva. Nós pisamos na grama descalços para restaurar o contato com a terra perdido há anos, colhemos ervas aromáticas em nossa horta, conversamos e rimos o tempo todo, um riso espontâneo e sadio, resgatando um relacionamento humano já esquecido.
Nós não temos salão de jogos com sinuca, totó e ping-pong para você passar o tempo depois do almoço. Depois do almoço nós nos reunimos para um bate papo agradável, com troca de experiências ou simplesmente tiramos um bom e restaurador cochilo embalados pelo canto dos sabiás.
Nós não temos self service com 54 tipos de comida ao qual você chega, disciplinadamente, em fila, torcendo para que as bandejas não se esgotem antes de você chegar lá e, lá chegando, comer o máximo que pode, estragando sua saúde, só para justificar o seu investimento. Nós lhe oferecemos um cardápio perfeitamente ajustado às suas necessidades, servido sobre toalhas brancas de puro algodão e com luz abundante para que você possa ver e degustar com tranqüilidade o que está comendo.
Nós não temos shows de música ao vivo. Para você ter uma idéia nós não temos nem televisão nos quartos! Depois do jantar nós nos sentamos em volta da lareira para degustar um bom vinho ou projetamos um filme com um tema instigante, que será sucedido por um debate, visando melhorar o nosso comportamento diante dos conflitos quotidianos.
Aqui, sim, você vai descansar. Bom fim de semana para todos.
quarta-feira, 3 de março de 2010
Aos pés do senhor!!!!
Apesar de ser ainda final de verão, fazia um tempo de outono, folhas caídas no chão e uma insistente chuva fina. Há muito que não ia a missa. Este domingo largou a preguiça de lado e rumou para a Igreja.
O caminho àquela hora estava um tanto deserto e não lembrava em nada os recém agitados dias de carnaval, que ocupam as ruas com alegria histérica. Uma senhorinha passeava com o cachorro, fiel companheiro dos tristes anos de viuvez. Um morador de rua dormia agarrado aos pertences. Apenas um casal passava com o jornal e pães para o café de domingo.
Havia poucas pessoas espalhadas pelos bancos da Igreja. Cadê os fiéis? Pensou. Tinha se enganado outra vez. A missa que ela cismava em ir às nove, começava na verdade às nove e meia. Não se importou, precisa mesmo de um tempo para “entrar no clima”.
Repara nas pessoas que ajudam na celebração. No músico que afina o violão e a voz das sopranos que dali a pouco se orgulhariam da plateia e da cantoria. As crianças se organizando para levar o ofertório. As beatas colocando os engomados panos litúrgicos, tudo como manda a tradição.
A Igreja de Santa Cecília, apesar de “modernoza” na arquitetura, de espaços amplos e frios, a ela parece acolhedora. Mesmo distraída que é, reparou no telão: Mais uma das modernidades da paróquia. Achou interessante. Não faz o tipo que reclama de novidades. Já repararam como tem gente que tem mania de reclamar do novo só porque é novo! Tem marido que reclama do vestido novo, do penteado novo, do brinco novo, do prato novo, mesmo que tudo isto tenha sido feito só para agradá-lo. Tem também um tipo de idoso que reclama de tudo novo. Do tempo, da música, da nova gripe (disto eu também reclamo), do remédio novo, do médico novo. Falou novo, pronto já vem logo com má vontade.
O telão novo estava ligado a um computador e as imagens vinham acompanhadas de um texto sobre a Quaresma que falava de jejum com abstinência. Foi quando notou aqueles dois pedacinhos de carne gorda e roliça que mais pareciam dois pãezinhos franceses, prontos para irem ao forno.
Antes de continuar, preciso fazer um parênteses: Eu tinha me prometido não falar mais em pés, mas estes foram parar bem na minha frente. Parece até provocação!
Como ia dizendo os pés pareciam um par de pães prestes a irem corar no forno. Calçavam uma sandália. Não! Um chinelo daqueles que não saem dos pés dos cariocas chova ou faça sol.
Não queria quebrar a promessa de parar de falar sobre pés sem um motivo forte. Sim, mesmo eu, que não me importo com novidades fiquei chocada com aqueles pés branquinhos e imaculados, delicadamente pousados em um chinelo. Achei mesmo uma indecência. Como? Deixar os pés a mostra? Rezar missa com os pés desnudos? Confesso que envelheci algumas décadas por não conseguir aceitar esta modernidade.
Resolveu olhar melhor, não estava num lugar em que pudesse julgar assim sem refletir um pouco. Claro, talvez ele estivesse com algum machucado, uma unha encravada quem sabe? Mas, não! Pés brancos, imaculados, sem calos e com um fino pó branco. Talvez um talco (ainda se usa talco?).
O Padre estava com a alva, a estola roxa e os pés à mostra! E, eu que ia falar sobre igreja retrógrada, a necessidade do uso de preservativos, o fim do celibato clerical, padres cantores e tudo o mais. Falar para quem? Quem sou eu para me meter neste assunto tão complexo.
Ado ado ado, cada um no seu quadrado. Mas se for padre, por favor, de preferência devidamente calçado!
Miranda
terça-feira, 2 de março de 2010
Pausa para descanso
Decreto nº 5.658, de 02 de Janeiro de 2006
Promulga a Convenção-Quadro sobre Controle do Uso do Tabaco, adotada pelos países membros da Organização Mundial de Saúde em 21 de maio de 2003 e assinada pelo Brasil em 16 de junho de 2003.
Tenho obsessão por atrasos. Falando sério. Enquanto nossos vizinhos do andar de cima repetem “Time is Money!” até ficar roucos, eu não consigo chegar na hora certa nem para escovar os meus dentes. E lógico, obsessiva que sou, vivo com a sensação de estar sempre devendo alguma coisa. Provavelmente tempo, que eu roubei de alguém para dar a outra pessoa, ou a outra coisa, tanto faz, quem vive com sentimento de culpa sabe que dá tudo no mesmo, culpa é culpa.
Então. Vivo com sentimento de culpa por chegar atrasada. Às vezes tão atrasada que quase não chego. Ou mesmo não chego, acabo me perdendo em algum dos muitos bares da vida para esquecer o atraso. Ou não consigo decidir aonde ir e, na dúvida, fico pelo caminho para não deixar furo com alguém. Simplesmente desisto de tudo que não consigo escolher e mudo de rumo. Atrasada. Atrasada e culpada. Culpada por não fazer. Ou por não ter feito. Do que fiz e faço raramente me arrependo, acho que se tivesse nascido japa lá pelos anos 30 teria morrido entre os kamikazes nos anos 40. Claro que faço muita, digamos assim, bobagens, mas nunca me arrependi de viver. Já quase desisti, mas na hora H voltei atrás, olhei no espelho e me apaixonei pela idéia de recriar minha vida a partir do material de demolição.
Porque sou apaixonada, cronicamente. E voluvelmente, também. Já amei coisas tão esdrúxulas quanto aminoácidos e peptídeos, vocês os conhecem? Pois bem, por muitos anos (mais de dez) da minha vida os estudei obstinadamente. Não assim, ao acaso, mas com um fim certo: a conformação da alça V3 do HIV. É sério. Escrevi tese sobre o assunto. Não sobre a conformação, mas sobre a origem de uma variante com conformação possivelmente diferente. Não riam, é verdade. Claro que surtei, decidi ser (quase) normal e trabalhar em saúde pública. E isto porque sou médica. Se fosse bioquímica teria resolvido estudar o comportamento humano. Ou, se tivesse seguido minha verdadeira vocação e feito sociologia, hoje seria uma renomada escritora de romances policiais, do tipo que deixaria Agatha Christie (outra das minhas paixões) no chinelo. Vá entender a cabeça de uma pisciana!
E falando em paixão, andei tentando me desvencilhar da crença de que saúde é um bem público, mas não consegui. Como não consigo acreditar que eu não tenho nada com isso. Talvez porque, mais uma vez, esteja chegando atrasada, já tenham sucateado o SUS e eu ainda acreditando que é possível... Então sigo em frente, sempre rebelde, meio assim, fora do tempo. Como agora, nas nossas conversas. Saio de banda por uns dias e, quando decido dar uma espiadela no blog me bate a sensação de ter morado por uns dois meses no Alaska, quando nem pisei fora do Rio. Novidades mil! E culpas de novo, merda! Por tudo. Decido não bisbilhotar vocês para não cair na tentação, obviamente me descumpro e aqui estou. Atrasada, agora com meus estudos. Culpa por não estudar, culpa por não escrever, culpa por ler o que escrevem, culpa por estar escrevendo, culpa por esperar demais de mim mesma...
E o pior de tudo é o motivo desta crônica: alguém aí conhece o que é a Convenção-Quadro sobre Controle do Uso do Tabaco? Pois bem, trata-se de um complô internacional instituído em 2003 contra nós, boêmios tabagistas, errantes e errados. E eu, para variar, atrasada, agora internacionalmente. Decidiram acabar com a nossa farra há alguns anos e eu aqui, escrevendo: Vamos transgredir? Lembram da Lei anti-fumo & al? Pois bem, tudo parte do acordo. Nem sei se quero transgredir mais, talvez me enquadre. Pelo menos enquanto não acaba o efeito da meia garrafa de vinho tinto que acabei de beber e do cigarro que fumarei agora.
Tchau.
segunda-feira, 1 de março de 2010
Parabéns, Rio de Janeiro
Em um janeiro que não me recordo, no início dos anos 80, eu era toda a beleza da juventude, que independia da estética vigente ou do último grito da moda. Eu era o topo da vida, ainda que me faltasse a sabedoria da maturidade, mas me sobrava a liberdade de que tudo eu poderia ser. Nada nunca me bastaria, tudo me seria insuficiente.
Eu era férias de verão, shows de MPB dos fins de tarde na praia do Arpoador, festas à noite com quase nenhum dinheiro, e a marca da alcinha do biquíni a reluzir, no meu ombro dourado de sol.
Era janeiro de um Rio que abria suas areias, como tapetes vermelhos, para que por elas eu desfilasse minhas alegrias, minhas imprudências e minhas paixões. Era um janeiro, que me permitia jovem, me saciava de calor e desejo, me embriagava de garrafas e garrafas de bebida forte, sem que me viesse a ressaca, do dia seguinte, cheia de culpa ou de compromissos que me dessem um pouco de arrependimento.
Eu era livre, e todos os dias acordava com a liberdade a chamar por mim.
Era um Rio de um janeiro lindo, cheio de sol, em que não usávamos protetor solar. Não controlávamos nem o açúcar e nem o colesterol do nosso sangue, e só reparávamos na pressão do seu fluxo, quando estávamos excitados de tanto amor.
Lamento não me lembrar do ano exato deste janeiro, em que numa noite de lua cheia, subimos a torre em ruínas do Parque Lage. Acompanhados do coaxar dos sapos, dos cantos das corujas e do zumbido de uma leve brisa que vinha das montanhas do Corcovado, fizemos a nossa serenata.
Um janeiro em que descemos as ladeiras de Santa Tereza, em muitos, pela madrugada, rindo e falantes, espiando o horizonte cor de rosa, ameaçando nos anunciar o dia.
Foi um janeiro que passou no Rio, mas ficou tão presente na minha memória.
Muitos verões de janeiro já se passaram desde então. A tal maturidade já se estabeleceu em mim. Com ela, a sabedoria, as descendências, a paciência, a tolerância. Nem senti quando chegaram, mas foram amigas fraternas comigo e me acolheram decentemente.
Ah !E eu continuo uma eterna apaixonada por esta Cidade.
Claudia Bontempo