terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Cantiga para o Haiti

Acordo cedo. Os passarinhos fazem uma festa lá fora, indiferentes ao que acontece. Abro a porta da varanda. Respiro fundo. O verde entra pelas minhas narinas, me convida. As azáleas em diferentes tons de rosa combinam com as hortênsias e emolduram o caminho que vem até minha casa. As borboletas ainda não apareceram. Talvez um pouco mais tarde. As helicônias estão tão lindas, em laranja néon que, se, bem descritas vão romper a tênue linha que separa a verdade do exagero..

Respiro fundo. Alguém me chama para o café. Mesa farta. Escolho um suco e corto em rodelas uma banana que vou comer com algum cereal. Olho através do vidro, uma felicidade imensa me invade. Desde muito pequena a sensação de felicidade vem acompanhada de uma melancolia profunda.

Aluna de colégio de freiras tinha missa obrigatória às quartas-feiras. Sempre gostei de ir a missa. Gostava de tudo: Da pequena capela do Colégio, toda iluminada por enormes janelas de vidro, verdadeiras vitrinas para a mata-atlântica que cercava o pequeno prédio. Gostava da singela decoração com flores naturais que ladeavam imensos castiçais. Gostava da roupa do padre, do sermão, gostava sobretudo das cantigas. E a melancolia?

“Para mim a chuva no telhado é cantiga de ninar, mas o pobre meu irmão para ele a chuva fina vai correndo em seu barraco e se esparrama pelo chão”.

Não era raro cantarmos esta canção na missa. Com doze anos eu não sabia o que era melancolia. Mas sempre que ouvia esta cantiga duas lágrimas me escorriam pelo rosto. Um aperto no coração.

Olho a natureza, generosa, com seus verdes o colorido das flores o canto dos passarinhos e lá vem a melancolia cantada. E o pobre meu irmão?

O Haiti foi destruído. Obra da mesma natureza que me presenteia a cada manhã com pássaros, flores s e borboletas e que me faz suspirar.

Nestas horas é fácil encontrar culpados. A Natureza, o Sistema, os Países Ricos etc e tal, infinito e além. A tragédia não tem cara. É descarada. Por um instante penso em parar de escrever este texto. Assunto veiculado à exaustão pela media. Que também não tem cara.

Mas o pobre meu irmão? O que fazer?

Os brasileiros se ofendem quando os americanos não sabem nem localizar o Brasil no mapa. Acham até infame quando um americano pergunta se tem jacaré atravessando as ruas. Mas a verdade é que não sabemos nada nem de nós mesmos.

Eu não sabia que o Haiti era o país mais pobre das Américas, nem que lá poderia ter terremoto e que este poderia ter esta proporção. Infinitamente triste. Eu sou ignorante. A verdade é esta. Ignoro tanta coisa que me pergunto se estou viva.

Não sei o que fazer para ajudar o pobre meu irmão e isso me angustia muito. Penso em largar tudo e ir para o Haiti e dar carinho e conforto. Penso também que não preciso ir tão longe, que o pobre meu irmão está bem aqui ao meu lado. Que me faz uma média pela manhã e me entrega com um sorriso no rosto. Que enquanto lixa minhas unhas me conta como sua casa ficou alagada e da sorte que teve considerando que nada aconteceu aos seus filhos.

Não consigo concluir, porque não consigo entender. O que fazer? Rápido. Antes que outra tragédia aconteça.


Miranda

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5 comentários:

  1. Esta é uma obra-prima. Esta é a Miranda.
    Luigi

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  2. Querida Miranda,
    Você soube conduzir muito bem a narrativa da crônica, mostrando como os contrastes, que muitas vezes, embelezam e vivificam o cotidiano, em outras, causam-lhe uma imcompreensão sem limites na gente.
    Crônica poderosa, densa, parabéns !

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  3. Enquanto dirigia para casa, ainda há pouco, pensava em outro texto que quero escrever. Um texto de humor. Pensava então o quanto o humor é poderoso, que de tudo pode-se extrair humor. E claro, me veio a estória do Haiti. Será que dá para se tirar humor de tanta tragédia? E a resposta foi: sim. Imagina o país mais pobre do continente, completamente fodido, sem qualquer estrutura desde sempre, castigado por catástrofes naturais e humanas, e logo sobre ele, justamente ali, Deus, a Natureza, a memória geológica ou o que quer que seja decide despejar o terremoto mais violento registrado pelos instrumentos "modernos"! Se conseguíssemos nos despir de toda a humanidade que nos resta poderíamos dizer: isso só pode ser piada! E então me lembrei do trecho de uma entrevista que li de manhã no jornal, uma criatura conhecida dizendo que essa era uma oportunidade única de se reconstruir o Haiti!!!!! Como assim, cara pálida, estamos falando de um prédio ou de um país? Prédio pode-se evacuar a tempo, antes de ser colocado abaixo! Em outro momento da minha vida descobri que sobre um terreno baldio pode-se construir qualquer coisa, mas pensei isto de forma simbólida, até porque o terreno baldio era a minha vida. Mas um país? Pode-se evacuar um país, ou imaginá-lo sem nada a ponto de poder ser reconstruído do zero? Sem pessoas? Sem passado? Sem cultura? A "fala" em questão foi dita a sério, mas ilustra o que eu pensava sobre o humor em devaneios de projeto de escritora. Dispa-se de toda a humanidade e poderá ver humor em tudo. Será que a criatura quis dizer: agora que já demoliram tudo, que não restou nada mesmo, é tempo de se reconstruir o Haiti? Se não foi isso desculpem, entendi mal. Se foi, só esquecendo-se dos haitianos e fazendo-se piada.
    Parabéns, Mirandinha!

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  4. Olá Miranda!

    Achei muito oportuno:
    Crônica social com um tema super-atual, que aparece em tudo que é tela e boca. A narrativa é bem-escrita usando sua história para denunciar tal fato. Muito bom!

    Saudações!

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  5. Monica
    Este seu comentário é uma crônica! Uma belissíma crônica. Parabéns
    Luigi

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