"Vou dispensá-los do curso sobre a arte de escrever que os dois Sócrates deram à moça. Quero falar de outra coisa Há algum tempo, atravessei Paris de taxi e o chofer era falador. Ele não conseguia dormir à noite. Sofria de uma insônia crônica. Isso tinha começado na guerra. Era marinheiro. Seu navio tinha afundado. Ele nadara durante três dias e três noites. Depois fora salvo. Passara muitos meses entra a vida e a morte. Ficara bom, mas perdera o sono.
'Tenho atrás de mim um terço de minha vida a mais do que você', disse ele com um sorriso.
'E o que é que você faz com esse terço a mais?', perguntei.
Ele respondeu: 'Eu escrevo'.
Eu quis saber sobre o que ele escrevia.
Escrevia sobre sua vida. A história de um homem que tinha nadado durante três dias no mar, que tinha lutado contra a morte, que tinha perdido o sono e que no entanto conservara a força de viver.
'Você escreve sobre isso para seus filhos? Como uma crônica de família?'
Ele sorriu com amargura: 'Para meus filhos? Isso não iria interessá-los. É um livro que escrevo. Acho que poderia ajudar muita gente'.
Essa conversa com o chofer de táxi de repente esclareceu para mim a natureza da atividade de escritor. Escrevemos livros porque nossos filhos se desinteressam de nós. Nós nos dirigimos ao mundo anônimo porque nossa mulher tapa os ouvidos quando falamos com ela.
Vocês irão replicar que, no caso do chofer de taxi, trata-se de um grafomaníaco e de modo algum de um escritor. Portanto, para começar, é necessário precisar os conceitos. Uma mulher que escreve quatro cartas por dia para seu amante não é uma grafomaníaca. É uma apaixonada. Mas meu amigo que tira fotocópias de sua correspondência amorosa para publicá-las um dia é um grafomaníaco. A grafomania não é o desejo de escrever cartas, diários íntimos, crônicas familiares (isto é, escrever para si ou para os próximos), mas de escrever livros (portanto ter um público de leitores desconhecidos). Nesse sentido, a paixão do chofer de táxi e a de Goethe são a mesma. O que distingue Goethe do chofer de táxi não é uma paixão diferente, mas o diferente resultado da paixão.
A grafomania (mania de escrever livros) assume fatalmente proporções de epidemia quando o desenvolvimento da sociedade preenche três condições fundamentais:
1. Um nível elevado de bem estar geral, que permite às pessoas dedicar-se a uma atividade inútil;
2. Um alto grau de dispersão da vida social e, conseqüentemente, de isolamento geral dos indivíduos;
3. A falta radical de grandes mudanças sociais na vida interna da nação [sob esse ponto de vista, parece-me sintomático que na França, onde nada praticamente acontece, a porcentagem de escritores seja vinte e uma vezes mais elevada do que em Israel (...)].
Mas o efeito, por um contragolpe, se repercute na causa. O isolamento geral engendra a grafomania, e a grafomania generalizada reforça e agrava, por sua vez, o isolamento. A invenção do prelo no passado permitiu aos homens se compreenderem mutuamente. Na era da grafomania universal, o fato de escrever livros adquire um sentido oposto: cada um se cerca de suas próprias palavras como de um muro de espelhos que não deixa passar nenhuma voz de fora.
(Texto extraído da Quarta parte: Cartas perdidas, de “O livro do riso e do esquecimento”, Milan Kundera)
Mônica
ResponderExcluirExcelente o texto de Kundera. Ilustrativo e didático, será útil para todos nós. Se entendi bem, você já fez as pazes com os humanos.Comemoraremos na quinta.
Abraços do
Luigi
Mônica,
ResponderExcluir"Escrevemos livros porque nossos filhos se desinteressam de nós! Nós nos dirigimos ao mundo anônimo porque nossa mulher tapa os ouvidos quando falamos com ela." Escrevemos livros porque temos o que dizer, mesmo que ninguém queira ouvir.