quarta-feira, 31 de março de 2010

Outono



A menina atravessou a rua correndo. Não podia perder o ônibus da escola novamente. Como sempre, custara a ouvir tocar o despertador e pulara da cama só no último instante, no limite do tempo possível. Corre para escovar os dentes, passa uma escova nos cabelos rebeldes, veste o que falta do uniforme, cata qualquer coisa para comer no caminho e voa escada abaixo. Na portaria mal dá tempo de cumprimentar Severino, seu cúmplice fiel há tantos anos. É graças a ele que volta e meia consegue assistir os primeiros tempos de aula: quando o ônibus dobra a esquina e ela não está na portaria é Severino quem chega pelo interfone. E lá vai Roberta, no seu ritual matutino: calça jeans, tênis e blusa sobre o corpo magro na porta da adolescência, xuxinha nos cabelos cor de mel, mochila nas costas e uns trocados para o lanche, chave da casa na mão e asas nos pés.

Roberta espia o relógio da cozinha. Ainda lhe restam alguns minutos para o café rápido de todas as manhãs. Enquanto aguarda a fervura da água, arruma mais uma vez os cabelos. Por que cisma em mantê-los tão longos? Prepara o sanduíche de sempre; volta ao quarto para pegar a bolsa. Dê relance olha a silhueta no espelho da porta: malditas reuniões, maldito espelho, maldita preguiça. Repassa com a agenda o dia que começa, confere os documentos preparados com tanto cuidado. Enquanto arruma a pasta atende o celular, que tocará insistentemente ao longo de todo o dia. Algumas anotações e o café, pão e queijo, escova de dentes e batom. Lembra-se do jantar planejado há tanto tempo, antecipa o prazer do encontro. Se nada der errado haverá tempo para outro banho.

Deixo a mesa da copa, enquanto ferve a água para o chá. Pela janela envidraçada observo os galhos das árvores cantarem com o vento: bela manhã de outono, manchas coloridas de folhas no jardim. Penso no tempo, no dia que começa. Nas pinturas que preciso terminar. Retorno ao chá. Arrumo o xale em torno dos ombros, afasto os fios que caem sobre o meu rosto. Aperto a caneca entre as mãos, enquanto caminho devagar para a varanda. Aconchego-me no banco da esquerda, como todos os dias. Fecho meus olhos sem pressa, lentamente sorvo o chá que aquece o meu corpo. Em breve ela chegará, e juntas decidiremos o que fazer com o resto do dia.

8 comentários:

  1. Ideia interessante,Mônica. Roberta em três tempos ("primavera", "verão", "outono"?)? Um conto, talvez.

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  2. Moniquinha,
    Éramos felizes e não sabíamos...
    Que fim levou aquela euforia da nossa criação coletiva ? Será que amadurecemos como a Roberta do seu conto ou nos tornamos mais exigentes e duros conosco ? Ando tão preocupada com as (in)correções nos meus textos, que mal consigo ter idéias...
    Só tenho pensado em críticas, críticas e mais críticas.
    Seu conto me lembrou a alegria do nosso primeiro encontro e no sofrimento que se tornou escrever para mim.
    Não é que seja de todo mal, mas parece que a espontaneidade se foi.
    Será que estamos no caminho certo ?

    Beijos pensativos,

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  3. Vi lá no blog do Carpinejar (no item "conhecimentos", parte da divulgação de uma oficina de crônicas que ele vai ministrar em SP):
    "(...) A despretensão e a espontaneidade. Simplicidade e surpresa. A leveza não é superficial. Manter o foco. A cozinha do trivial: o assunto é o estilo. Os três E da crônica: Estranheza, Exemplo, Emoção. O detalhe é Deus. Hesitações de uma conversa: a proximidade com o leitor. O ponto de vista minoritário. A importância da poesia na elaboração da atmosfera. (...)"

    Para descobrir o caminho, vamos tentando... :)

    Beijos.

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  4. Claudia, eu também estou nesse movimento, mas não acho ruim. Acho que passou a euforia inicial de escrever e me tornei muito mais exigente comigo. No momento busco o meu estilo, acho que poderia dizer: a estética dos meus textos. (muito pretencioso?) Esse que postei andou comigo muito tempo, amadurecendo, e ainda acho que não cheguei ao ponto que queria, ainda "não é isso". Costumo dizer que só temos dúvidas sobre aquilo que sabemos, talvez a gente esteja aprendendo a escrever.
    beijo
    Monica

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  5. Mônica
    Eu senti a mesma coisa que a Claudia. Ela expressou tudo aquilo que eu poderia dizer. E a tua resposta é encorajadora. Vamos em frente

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  6. Queridos,
    o ato de escrever é para mim um alento. Escrevo crônicas porque em geral elas tem um certo humor. É como se fosse um refresco para mim, principalmente quando não estou me sentindo lá muito feliz.
    Escrevo crônicas, porque elas recortam um pedacinho da rotina e me levam a reparar no simples e a compreender melhor o mundo a meu redor.
    E você pergunta e as críticas? São muito bem vindas, as construtivas e elogiosas é claro. Continuem a colocar uma letrinha trás da outra que a coisa acontece!!!
    Beijos da Miranda

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  7. Moniquinha e cia,
    Este já é o terceiro comentário que eu faço a esta crônica e aos comentários.
    Primeiramente, a crônica é muito boa, e eu vinha sentindo falta de ouvir a voz da Mônica, Notei também que o texto está bem mais trabalhado. Parabéns.
    Quanto a alegria de escrever para mim não mudou nada, e é por isso que eu escrevo crônicas, elas me levam a observar o mundo a meu redor e recortar as coisas simples do cotidiano (sem maiores pretensões) além de colocar um pouquinho de humor no texto.
    E as críticas? Não ligo! Minto! Ligo sim, adoro as elogiosas e as construtivas. Beijos Da Miranda de sempre.

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