segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

O Pulinho da Santinha






Claudia Bontempo

Da varanda da minha casa, se eu ficasse na pontinha dos pés e esticasse o pescoço, dava para ver a igreja da Penha e seus dois sinos. Se desse uns pulinhos, conseguia até ver a rocha sem vegetação enfeitada por ela. Então, quando me metia em alguma confusão de menina, eu ia me espichar lá fora . Como não sabia rezar direito, só o esforço que fazia para olhar a igrejinha, já achava ser suficiente para que Nossa Senhora da Penha olhasse por mim e me tirasse da enrascada. Ninguém acreditava naquela minha fé na Santinha. A vó Zeca ralhava com medo que eu tropeçasse ou ficasse com torcicolo. Meu pai achava bonitinho e balançava a cabeça pra lá e pra cá. Minhas irmãs zombavam e faziam fofoca – “está é pulando para perder uns quilinhos”. Eu torcia para crescer e poder rezar sossegada.

Uma noite estava a maior chatice, sem nada para brincar e o Francisquinho, meu vizinho que morava em frente, veio com a conversa da gente fumar cigarro.Eu quis. Chamei as meninas, que não gostaram da idéia, fizeram cara feia, disseram uns sermões, mas foram só por curiosidade. Pegamos umas folhas de jornal, uma caixa de fósforo e corremos escondidos para o banheiro dele. Enrolamos e acendemos um pedaço de jornal, já que ninguém tinha dinheiro para comprar fumo de verdade. O troço começou a pegar fogo e eu enfiei rápido na boca, puxando com toda a força. Não contava que ia engasgar com a fumaça que entrou que nem fogo no meu peito. Via tudo rodando e não respirava. Só tossia.

As meninas choravam , o Francisquinho não sabia o que fazer. Era só apavoramento. Eu tentava pedir para eles irem na varanda de casa gritar para a Santinha vir me acudir. Mas não conseguia falar e só tossia. Além disso, estavam com medo de abrir a porta, os adultos descobrirem e a gente levar cascudo. Me abanavam, sopravam, batiam nas minhas costas. Até que alguém lembrou de empurrar com a mão uma janelinha que tinha no banheiro. Pela fresta de ar e luz, descobri a visão mais linda da Igreja da Penha. Eu nem sabia que era o dia da procissão e ela estava mais iluminada do que nunca. Achando que ia morrer, me passaram pela cabeça as estórias da minha vó, que me assombravam o sono, sobre os romeiros que subiam as escadarias da Penha de joelhos e chegavam lá em cima com eles pingando sangue, para agradecerem um milagre. Então, falei em pensamento ;

- Valei-me Santinha que eu vou ralar meus joelhos até o osso, na sua escadaria, se eu voltar a respirar.

Aos poucos fui parando de tossir, respirando. O cheiro da fumaça foi acabando. Nós limpamos a bagunça e saímos do cubículo. Desconfiados, ligeiros, cabisbaixos. Francisquinho, que nem falava de tanta vergonha de não ter protegido as mocinhas, foi se meter para dentro do quarto. De volta para nossa casa, as meninas foram sentar quietinhas no sofá da sala, ajeitando os vestidinhos. Eu fui pular na varanda e medir o tamanho da pirambeira que ia ter de subir de joelhos, só para agradecer à Santinha.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Somos e sempre seremos quatro

Felipe Pena, Severino, Roberta, Noronha e Miranda

Éramos seis é o nome de um livro que não li, mas que ao que tudo indica provoca uma choradeira danada. O exemplar que tinha aqui em casa e que provavelmente veio da casa dos meus pais era de papel jornal, com a capa mole, e com uma figura mal impressa de uma família. Se olhar para trás ele deve estar bem ali na estante, mas eu nunca li e não vou ler.

Aqui está, não resisti, me virei,  e o livro não saiu do lugar estes anos todos. Capa amarela, com laranja, mistura que eu adorava mas que agora acho cafona. No alto da página vem o nome da autora em letras caixa alta, centralizado sobre o título em caixa alta e baixa: Éramos seis. Abaixo do texto vem o desenho de uma família de seis pessoas. Pai, mãe, três filhos e uma bebê. Não vou ler já disse, mas todas as vezes que eu olho para aquela capa fico imaginando o que aconteceu àquela família e assim ao longo destes anos eu já escrevi e mirabolei mil e uma histórias. Em nenhuma delas o éramos seis me sugeriu soma, sempre tristeza e tragédia.

Éramos quatro, foi uma das crônicas que eu escrevi para a “Oficina do
Pena”. O Pena era o professor e foi uma espécie de padrinho de um grupo de amigos que se reuniu para discutir literatura,comer batata frita e tomar um chopinho que ninguém é de ferro!
Na verdade acho que a crônica se chamava lá em casa éramos quatro,ihhhh estou ficando caduca! o nome da crônica afinal era: Somos feitos do mesmo que os nossos sonhos ( “we are such stuff as dreams are made on”) W. Shakespeare.

Agora me lembro, minto reli: o texto começava com a frase: Lá em casa éramos quatro e nele eu revelava o porque da escolha do pseudônimo para assinar as crônicas da Oficina do Pena.
A “Oficina do Pena” deu origem a um grupo chamado “Depois da Oficina”. Nos reuníamos toda semana para discutirmos literatura, comer e beber.

No começo éramos sete, mas dois membros do grupo eram bissextos, nem sempre podiam ir. Depois tivemos uma baixa, um dos membros quis sair e se foi. Os bissextos também não puderam mais comparecer e então éramos quatro até outro dia.
Três moças e um rapaz. Nos tornamos muito amigos e toda a semana, tínhamos a alegria de nos encontrarmos.

Antes  o texto  nos uniu, nos inspirou e nos fez suspirar para que chegasse logo o dia de lermos para os colegas o que produzíamos com carinho ao longo da semana. Agora a dificuldade de conseguirmos escrever, ou por falta de inspiração, transpiração ou tempo ou seja lá o que for nos afastou. Será?

Acredito que não, que ainda há salvação e que podemos deixar de ser um quarteto de três e voltar a ser um quarteto de quatro.

E que se agora não conseguimos escrever como outrora, podemos nos perdoar e seguir em frente e contar o que aconteceu no cabeleireiro por exemplo, colocando uma letrinha atrás da outra, sem maiores pretensões apenas para não perder a amizade e o vínculo que nos une.

E, se a Moniquinha quis sair, problema dela, tenho certeza que o Tio Vavá continua por aí cantando e encantando as moçoilas.

Hoje o “Depois da Oficina” se reuniu e não tomou vinho, tomamos um café mirabolante e combinamos a próxima reunião para 10 de Janeiro. Vou sentir saudades.
Quem não tiver o que escrever conte como foram as festas de fim de ano. Simples Assim!
FELIZ NATAL. Beijos da Miranda de sempre.
Peço mil desculpas pelo texto mal escrito, mas o motivo deu ter parado de escrever é preguiça mesmo!!!

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Escolhas

“Estendo minhas antenas e como um inseto subindo pelo áspero casco de uma árvore faço minha escolha e sigo o meu caminho”
                                                                                       Lygia Fagundes Telles


A vida é feita de escolhas. Isto já foi cantado, à exaustão, em prosa e verso. Fazer escolhas. Optar, selecionar, escolher, decidir. Hesitação, dúvida, insegurança, indecisão, medo, arrependimento.

Já observei insetos e outros bichos fazendo suas escolhas: formigas, abelhas, aranhas, lagartixas, gambás. Reparei como eles também hesitam.

Eu nunca tive escolhas. Apenas o Destino me disse, com voz rouca:
“Revertere locum tuum”
Assim foi. E meu caminho se iluminou.
E assim é. Não preciso fazer escolhas. Meu caminho é iluminado.
Para onde acende a luz eu vou. Porque meu caminho é iluminado.

O problema é quando acaba a bateria.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Conversa de Barbeiro

-- Tudo bem ?
-- Tudo.
-- Sente, por favor.
-- Ah.
-- Está quente, né ?
-- É.
-- É muito calor.
-- É.
-- Em São Paulo choveu muito.
-- Foi ?
-- Aqui não choveu.
-- Não.
-- Eu não gosto quando chove.
-- Não ?
-- Não. O senhor gosta ?
-- Não.
-- Mas a roça precisa de chuva.
-- É.
-- Semana passada minha rua alagou.
-- Foi ?
-- Foi. É um perigo, né ?
-- É.
-- Também, ninguém faz nada!
-- Não.

E vocês?  Por que não inventam um diálogo com a sua cabeleireira?

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Reforma Ortográfica

Coloquei um adendo à Cronica "A Língua de Cada Um". Obviamente não pretendo com isso atenuar meus erros de português, os quais transcendem os limites da escola primária. Transcrevo-o  por achá-lo útil ao debate:

{Escrevi o desabafo acima já faz tempo, embora só o tenha postado recentemente.
Encontrei agora, no jornal “rascunho” de Novembro de 2010, na seção “Cartas”,
um outro desabafo, escrito por José Ignacio Coelho Mendes Neto:}

“Nova Ortografia”
“Descobri recentemente o jornal Rascunho - - - . É o primeiro veículo de imprensa que vejo destacar sua recusa da reforma. Achei uma iniciativa sensacional, que deveria ter sido a norma entre todos os usuários da língua. Sou tradutor e revisor e repudio completamente a proposta de reforma ortográfica articulada por meia dúzia de indivíduos que se julgam no direito de alterar a língua apenas para venderem suas obras de atualização. É o maior crime contra a nossa cultura que já ocorreu em toda a história da língua portuguesa. Não só os motivos alegados são todos escusos, como a própria substância da reforma introduz cascatas de novos erros e incertezas. Um atentado como esse só poderia resultar da mentalidade burocrática que acha que a língua pode ser objeto de legislação. Em Portugal, que por razões incompreensíveis concordou com essa palhaçada, a reforma não foi adotada por nenhum órgão de comunicação, por nenhuma instituição de ensino, nem pública, nem privada, por nenhuma editora, nem pela população. Foi totalmente ignorada, como deveria ser. Pelo menos vejo que a sua publicação foge à postura acéfala e acrítica que domina o nosso país. Estão de parabéns!

José Ignacio Coelho Mendes Neto



quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

A Banana do Gambá

- Oi, Alzira? Sou eu. Olha, eu tive que sair correndo, se não perdia o ônibus. Escuta, deixei comida na geladeira pra você e o Pedrinho; tirei a roupa da corda, que parece que vai chover. Aaqui, não esquece de botar o lixo pra fora. A banana do gambá está em cima da cômoda. Tchau, heim, fica com Deus. Tchau...tchau.
Desligou.

Eu estava quase adormecendo na minha poltrona da Mil e Um, saindo de Friburgo, quando ouvi a mulher falando ao telefone, sentada junto ao corredor, um banco adiante do meu.
“A banana do gambá está em cima da cômoda”. Quis perguntar-lhe:
- A senhora tem um gambá? – mas antes que eu abrisse a boca a sua vizinha puxou conversa. Fiquei com a pergunta entalada na garganta.
Era obvio que ela tinha um gambá. Mas, como seria? Estaria preso numa gaiola? Num curral? Seria apenas um visitante que passava todas as noites para recolher sua refeição? Ele encontraria sua banana todas as noites? A recomendação feita à Alzira dá a entender que sim.
Eu não tirava os olhos da mulher. Esperava apenas que ela fizesse uma pausa na conversa com a vizinha para fazer-lhe a pergunta. E nada. O tempo passava. Que idiota. Eu deveria tê-la interrompido logo no começo, agora ficava difícil. A vizinha não parava de falar. E o tempo passava.

Comecei a pensar nos meus gambás, que se acomodavam no teto da casa. Que roubavam os vestidinhos das bonecas para acolchoarem seus ninhos. Que comiam as bananas deixadas expostas na cozinha. Lembrei-me de quando um filhote escorregou das telhas e ficou vagando pelo sótão. Levei-o dentro de uma caixa de madeira até a margem de um riacho, em pleno bosque, onde teria água e comida. Desconfiado, não queria sair da caixa. Esticou o pescoço, nossos olhos se encontraram. Eram "duas contas pequeninas que brilham mais que o luar".  Ele deu um salto e desapareceu na ribanceira.
E a mulher conversava, e conversava...
- Boa viagem, bondosa senhora! Cuide bem do seu gambá.

Luigi





sábado, 27 de novembro de 2010

Mais Desaforismos

• Já estou auferindo lucros com a minha escrita: estou me tornando um leitor muito melhor.

• De tanto ouvir falar que meus textos são longos demais chego à conclusão de que o padrão de beleza na literatura contemporânea é o Twitter.

• Com freqüência me perguntam por que escrevo. E eu respondo: escrevo porque não sei desenhar.

• Você diz que escreve porque não sabe desenhar. Concordo. Mas quem lhe disse que você sabe escrever?

·        Da precariedade da existência: Não se esqueça, um espirro pode salvar sua vida. Um mosquito pode acabar com ela.

• A leitura é aquela atividade através da qual você se renova: a cada hora, a cada dia; a cada página, a cada livro. Você não morre nunca. Até que, um dia, você deixará de ler.

• Estranha é a engenharia rodoviária em nosso país. É o único lugar do mundo - e olhe que eu já virei a metade dele – onde uma rodovia, ao encontrar um pontilhão, em lugar de alargar-se, fica mais estreita. Como diria o pai do Severino: “É tudo engenheiro!”.

• “São Paulo não tem mais garoa. Estudo do Impe revelou que o clima de São Paulo mudou tanto que a cidade deixou definitivamente de ser a terra da garoa.” (notícia de O Globo de 8 de Dezembro de 2010).

• Quem não conheceu a garoa de São Paulo não sabe o que é nostalgia.

• O número de acidentes na Ponte Rio-Niteroi está aumentando. A ponte foi projetada para 3 pistas e um acostamento com largura confortável e segura para a circulação dos veículos, o que incluía ônibus e caminhões. E assim operou por muitos anos. A atual Concessionária, com o beneplácito das autoridades, resolveu dividi-la em 4 pistas onde, obviamente, só cabiam 3, dando a entender que os engenheiros do projeto original eram uns idiotas. Com isso, ônibus e caminhões de bunda larga, que mal cabem dentro das faixas, obrigam os automóveis a se esgueirarem dentro do espaço que lhes sobra. O número de acidente aumentou. Num cálculo simplório e enganador os administradores alegam que, com a pista adicional, o fluxo aumentou em 18 por cento. Enganador, porque só beneficiou a Concessionária, com o aumento da arrecadação, e deixou o usuário com o aumento de acidentes e os congestionamentos antes e depois da ponte.

• Estamos em plena Copa do Mundo. Nunca entendi por que, na partida final, quando está em jogo não somente o prestigio de cada seleção mas também a honra da Pátria, havendo empate, vai-se para a prorrogação e, continuando o empate, a partida é decidida por pênaltis. Os jogadores, cansados à exaustão e emocionalmente desequilibrados, não reúnem mais o seu potencial de desempenho, incapazes de exibir sua habilidade na prática do esporte. O mais sensato seria repetir o jogo em outra data. Sei que isso é impossível pois arruinaria as televisões, a imprensa escrita, os patrocinadores e os próprios espectadores, que teriam de arcar com mais gastos de hotel. Mas será justo colocar nos pés de um só jogador a honra da Pátria? Execra-se o infeliz que errou o chute, glorifica-se o goleiro que, numa cagada, segurou a bola (porque sabe-se que é impossível defender um pênalti por habilidade – a distância e a velocidade da bola não o permitem. Sejamos sensatos. Para decidir uma partida nessas condições dando oportunidades iguais aos contendores e respeitar suas habilidades, bastaria abrir a barra do gol em, digamos, meio metro, e continuar o jogo. Se, após um certo tempo o empate continuar, abre-se o gol em mais meio metro. Em algum momento alguém marcaria o gol da vitória. Que seria conquistado em igualdade de condições de um jogo normal, com a capacidade de cada um. Vão me dizer que é muito difícil, tecnicamente, abrir a barra do gol. Bobagem. Qualquer serralheiro de subúrbio é capaz de criar uma engenhoca para abrir as traves de um campo de futebol.

Severino Mandacaru

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Boa Sorte

 Sorte é quando competência e oportunidade se encontram



BOA SORTE

Engraçado, a palavra sorte sempre me remeteu a uma coisa boa.  Ouvia a palavra e me vinha a mente algum coleguinha feliz por ter ganho a figurinha rara ou o zerinho quando disputava quem ia escolher o melhor time.

Ultimamente esta palavrinha maldita tem se tornado um tormento para mim. Anda funcionando como se fosse um palavrão daqueles bem cabeludos que, nos-idos-tempos-dos-limites, as mães sapecavam pimenta na boca dos que se atrevessem a pronunciá-lo.

Tudo começou com o Zico. ... Ouvi ..dizer... que ao ser perguntado o  porquê de tanta sorte ao bater faltas ele respondeu: “Quanto mais eu treino, mais sorte eu tenho”. É verdade o Galinho treinava muito. Acontece que se bem me recordo na Copa do México, quando ele perdeu aquele pênalti, acho que foi para a França, a bendita sorte, mesmo ele tendo treinado à exaustão, não lhe deu a menor bola. Que fique claro, não estou crucificando o talentoso Zico, estou é falando mal da sorte.

Passei a ter medo da sorte, pavor mesmo, desde que comecei a trabalhar como Consultora Imobliária.  Todo plantão é a mesma coisa, conversa vai, conversa vem e sempre tem alguma história de alguém que conhece alguém que teve a maior sorte: Faltava um minuto para terminar o plantão, apareceu um cliente e comprou três apartamentos de cobertura de frente para o mar na Vieira Souto. E, o que é pior: na verdade o felizardo, maldito, digo sortudo tinha só ido cobrir um plantão para o colega que teve um contratempo e não teve a sorte de estar no lugar certo na hora certa.

Além de treinar bastante chutes-a-gol, quero dizer: estudar o produto, saber quantos quartos, quantas torres o tamanho do terreno, a localização, a posição do sol, a implantação. Saber de cor todos os ítens da área de laser, que atualmente não são poucos!: pergolado, redário, biribol, piscina com borda infinita, bar molhado, espaço gourmet, garage band, horta, portaria, entrada, conciergerie  para citar apenas alguns.

Eu ia dizendo, além de treinar bastante, eu ainda tenho que depender da, com perdão da má palavra, SORTE?  E isso significa que se o indivíduo não treinar e tiver sorte ele vai vender? – É muito provável!

Então se é para depender da sorte eu quero ganhar sozinha na megasena  acumulada e com o dinheiro comprar um montão de apartamentos comigo mesma e com comissão quadruplicada. Em tempo, dispenso a borda infinita, o pergolado e o biribol rsrrsrsrsrs.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Carta aos Colegas*

*Revisada e editada na reunião semanal do “Depois da Oficina”



Queridos colegas,

Escrever, para nós, tornou-se penoso. É o que concluo a julgar pelo volume do material postado nas últimas semanas. Será inócuo perscrutar nas mentes o que nos reduziu a isso. Mas não será inútil tecer (é o meu ofício) algumas considerações em torno do impasse.

Agora entendo melhor a inquietação do Severino Mandacaru quando, debatendo-se em seu conflito sobre o desequilíbrio entre escrita e leitura, teve um surto de demência. Ele chegou à conclusão de que não haveria leitores suficientes para absorver tudo o que se publica. Lembrem-se que, no seu desvario, chegou a propor que se calculasse a quantidade de livros existentes nas livrarias, num determinado momento, e se comparasse com o número de leitores. Severino deu início ao seu projeto contando os volumes de uma livraria considerada padrão e chegou à expressiva cifra de 86.400 livros, contados nas prateleiras. Isso numa livraria, numa cidade, num só país. Estender a pesquisa a nível universal seria um trabalho inimaginável, tanto pela magnitude como pelo primitivismo da metodologia. Isto o enlouqueceu. Aparentemente.

Severino não estava tão maluco assim. Um dia depois que ele postou seu devaneio “Escrever”, (8 Agosto 2010) o suplemento “Digital” do Globo publicou a seguinte matéria do Google:

“Todo o bibliófilo que se preze já alimentou, em algum momento da vida, a inocente esperança de ler todos os livros do mundo”. Em seguida o artigo informa que, de acordo com uma pesquisa realizada, o mundo tem hoje 129.864.880 livros editados. Se multiplicarmos esse número pela quantidade de livros impressos em cada edição teremos, com algumas abstrações, o número que Severino buscava.

Depois disto não posso deixar de voltar ao assunto que ocupou nossas cabeças no “Depois da Oficina” quando, no auge da criatividade, e inflados pelos elogios de professores e colegas, cogitamos publicar um livro de crônicas bancando, nós mesmos, a edição. Não seria difícil, existem pequenas editoras que cuidam disso, os custos são baixos... e por aí vai.

Umberto Eco tratou desse assunto com muita propriedade. Podemos até discordar dele mas não ignorá-lo. Vejamos o que escreveu:

“Nos anos 70 comecei a me ocupar dos autores que chamei de “Quarta Dimensão” . A denominação vinha do fato de que eu definia como Primeira Dimensão a da obra em forma manuscrita, e como Segunda Dimensão, a da obra publicada por um editor sério. Calculando como Terceira Dimensão a do sucesso (visto que muitos autores, até excelentes, permanecem segregados na Segunda, destinados à picotadora ou aos reminder) eis que identifiquei a Quarta, aquela dos autores autofinanciados, em geral publicados por editoras especializadas em explorar esses talentos justamente incompreendidos. - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Mas, em suma, ao fazer aquela pesquisa, cheguei a recolher uma pequena biblioteca de autores editados à própria custa que hoje, trinta anos depois, tem todas as condições para entrar no mercado do antiquariato”.

Em que pese o quadro desanimador que se apresenta ao escritor principiante, acho oportuno avançar um pouco mais na discussão do tema e me permito fazê-lo com o beneplácito que se concede aos leigos. O fato de um texto não lograr êxito junto aos editores não deve constituir motivo de desânimo. Lembram-se do que a crítica disse da peça “Um Elefante no Caos”, de Millor Fernandes? (“De Aplausos e de Vaias”) Pois bem, Umberto Eco colecionou uma lista enorme de críticas recebidas por escritores desconhecidos que um dia se tornariam famosos:

“Não achamos que podemos funcionar no mercado da literatura para jovens. É longo, de estilo antiquado e cremos que não merece a reputação de que parece gozar”. Palavras com as quais Moby Dick foi recusado na Inglaterra em 1851.

“Cavalheiro, o senhor sepultou seu romance num cúmulo de detalhes que são bem desenhados mas totalmente supérfluos”. Com esta carta Flaubert, em 1856, viu repelida sua Madame Bovary.

“Dúvida. As rimas estão todas erradas”. Assim o primeiro manuscrito de poemas de Emily Dickinson foi rejeitado em 1862.

“Decididamente, dá nos nervos... ilegível. O sentido do esforço torna-se exasperante ao máximo grau. Não há história”. Henry James, “A Fonte Sagrada”, em 1901.

“No final do livro, tudo se desintegra. Tanto a escrita quanto as idéias explodem em fragmentos meio úmidos como polvorim molhado”. James Joyce, “Dedalus”, em 1916.

“A historia não chega a uma conclusão. Nem o caráter, nem a carreira do protagonista parecem chegar a um ponto que justifique o final. Em suma, parece que a história não se conclui”. Francis Scott Fitzgerald, “Este Lado do Paraíso”, em 1920.

“Meu Deus, meu Deus, não podemos publicá-lo. Acabaremos todos na prisão”. Faulkner, “Santuário”, 1931.

“ Impossível vender histórias de animais nos USA”. George Orwell, 1945, “A Revolução dos Bichos”, em 1945.

A lista segue, extensa, interessante, mas seria cansativo continuá-la. O que não se pode é deixar de ler o parágrafo com que Umberto Eco encerra o seu texto “A Loucura dos Especialistas” : “O que nos impressiona, nessas histórias, é que se trata de avaliações contemporâneas, feitas no calor dos fatos. Como para nos avisar que convém deixar as obras de arte em repouso, como os vinhos” .

Queridos colegas, exultemos! Não há porque chorar se nos estraçalham. Provavelmente o merecemos. De qualquer modo, nos dias de hoje tudo é mais fácil. A rede de “especialistas” expandiu-se de tal maneira que é possível diluir as magoas que eles provocam bem como precaver-se dos excessos laudatórios com os quais, raramente é verdade, somos brindados. Se você receber elogios alegre-se e vá em frente. Se você receber uma avaliação condenando o seu trabalho, alegre-se também, procure entendê-la, e continue trabalhando.

Porque o que dói mesmo é não receber nada. A indiferença dói mais do que a ofensa. E aí, não sei o que dizer. Você pode ser apenas um gênio incompreendido. Ou pode ser um grande talento, que precisa deixar suas obras descansando. “Como os vinhos”.

Luigi

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Balangandãs




Claudia Bontempo

Lourdinha nem tinha um corpo escultural, a bundinha era um pouco para dentro, nem rosto de princesa, o nariz aquilino denunciava a descendência espanhola. Mas a faceirice no olhar, o jogar dos cabelos quando falava davam um charme ímpar àquela tijucana . O irmão, Calixto, um tipo ciumento e musculoso, seguia seus passos como um cão de guarda e inibia os fiufius dos rapazes nas tardes de domingo da praça Sães Pena.

Todos se gabavam para ver quem seria o primeiro corajoso a convidar Lourdinha para a tarde dançante do Tijuca Tênis Clube. Enquanto isso,Juarez, um estudante do colégio militar, fora da confusão, bolava um jeito de chegar perto da espanholinha sem despertar a ira do peso pesado.

- Comida quente se come pelas beiradas.

E passou a segui-la de longe, pelas ruas do bairro, prestando atenção aos detalhes de sua rotina. A hora em que pegava o lotação para o colégio, o salão de beleza que fazia pedicure, a missa que assistia na paróquia com a família. Numa dessas idas e vindas, viu Lourdinha entrar em uma lojinha de presentes, sempre com o fortão do lado, mas sair sem indícios de compra e achou-a um tanto quanto amuada.

Juarez entrou logo depois no estabelecimento e, conversa vai, conversa vem, com a vendedora, perguntou-lhe qual o mimo despertara o interesse da moça. Ela prontamente lhe mostrou uma pulseirinha de prata cheia de balangandãs que tilintavam e brilhavam na luz. Achando que essa seria a oportunidade de ter um lugar ao sol no coração de Lourdinha, comprou o presentinho e pediu que entregasse na sua casa com um bilhetinho que dizia:

“ Meu coração bate por você na cadência do tilintar desses balangandãs, se quiser me conhecer coloque a pulseirinha e me espere no muro atrás da paróquia, hoje às seis da tarde”

Juarez foi para casa imaginando a entrada pela porta principal do Tijuca Tênis Clube de braço dado com Lourdinha trajando vestido de fustão e sapato de verniz. Dançariam a noite inteira diante dos olhares despeitados dos rapazes, na varanda talvez lhe roubasse um beijo. A boquinha, os cabelos, os olhinhos de Lourdinha.

No mesmo dia às seis da tarde, no muro atrás da igreja, um Juarez nervoso e excessivamente perfumado encontrou Calixto, de casaco e pantalona de couro, sacolejando o pulso com a pulseira de prata de balangandãs que lhe lançou um olhar lânguido. Só faltaram as castanholas.






quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Delírio

Em sua anástase, ressurgiu com alma nova. Mais puro, mais indulgente, mais humano. Antropomórfico, viu-se representado como um deus de oito braços abarcando um globo terrestre bífido que ele tentava manter unido. A seus pés, uma cártula indicava o seu destino. Sua dromofobia faria o resto. Temia ser considerado capto de mente e, antes que isso se confirmasse, mandar-se-ia para outros mundos. Novas terras, nova gente, novos ares. Novos sons, novos sabores, novos amores.

João Cândido Albino das Neves nunca se perdoou por ter nascido em Cabaceiras, aquele município perdido no semiárido paraibano. Não porque a cor da sua pele contrastasse com o tom chocolate do resto da população, conseqüência provável da erraticidade de algum holandês por aquelas bandas, mas porque não se conformava com o fato de que Cabaceiras, além da ridícula taxa de produtividade alcançada no cultivo da macaxeira, ostentava o recorde de menor índice pluviométrico do país. O que, segundo ele, não era verdade. Aquele estigma o indignava, e atribuía o fato ao erro cometido por um funcionário do IBGE, o qual, não acreditando no que via, inverteu os dígitos apresentados pelo pluviômetro no mesmo ano de sua instalação. A partir daí, conta a lenda, a engenhoca foi escalpelada pelos funcionários locais e o IBGE, - oh! têmpora, oh! mores, - passou a repetir o mesmo resultado ad perpetuam.

Cândido deixou sua terra natal em busca de um caldo cultural mais denso.
No Recife, passou noites sentado na balaustrada da Ponte Buarque de Macedo dissecando ossos imaginários de Augusto dos Anjos – Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
A biblioteca da Universidade Federal de Pernambuco foi o seu cadinho de relíquias bibliográficas. Escritores coevos não lhe interessavam. Só demiurgos, e demiurgos não se fazem mais em nossos dias. No colofão de um tratado de semiologia encontrou o caminho para outras obras que o cativariam no estudo dessa ciência. Dedicou-se com afinco e tornou-se professor na matéria, notabilizando-se por afabular os eventos dos quais participava e encantar seus alunos com hipotiposes.
Sua heterotopia deu-lhe fama. Fama e tédio. Não suportando mais a monotonia em que se metera, ouvindo bolodórios daqueles piriricas o tempo todo, excogitou sair-se da enrascadela e demandar por novos ares. Deixaria os alunos com seu assistente, aquele samango lutulento e mendaz que não fazia outra coisa senão preparar pernadas para tomar-lhe o lugar. Pois agora o teria.

João Cândido sairia dali. Tornar-se-ia um paguro e usufruiria de todos os benefícios que a nova vida lhe proporcionaria. Esta parataxia o libertaria dos grilhões que ele mesmo se impusera. A palingenesia faria o resto. Aleluia! Aleluia!
Vestiu seu melhor terno e escolheu a melhor gravata. Dirigiu-se ao aeroporto. Comprou a passagem no primeiro avião e saiu em busca do amor. O amor!
O amor? A fatalidade do seu palíndromo levou-o a Roma.
E foi pedir a bênção ao Santo Padre.


segunda-feira, 18 de outubro de 2010

A Primavera de Suzaninha



Claudia Bontempo

Morávamos numa cidade muito pequena, cheia de passarinhos em que a vida passava devagar. Meu pai era funcionário da única fábrica do lugar e minha melhor amiga, Suzaninha, era a filha do gerente geral. Nossas mães eram amigas desde pequenas, mas tinham situação financeira diferente. D. Aparecida podia andar de vestido, sapato e batom comprados na capital. Nos finais de semana a família assava carne na churrasqueira que tinha em casa.

Quando chegou a primavera Suzaninha veio me falar toda prosa que ia se mudar. O pai tinha sido transferido para a sucursal e morariam em apartamento com direito a automóvel. Fui correndo atrás dela festejar a notícia com a família que estava toda reunida nos sofás da varanda. Os filhos todos em volta do pai orgulhoso pela promoção que mereceu. Um vai e vem de vizinhos para parabenizá-lo, a maioria funcionários da fábrica aproveitando uma boquinha nos quitutes. Os homens improvisando discursos, algumas mulheres chorosas já imaginando saudades, crianças no quintal se engalfinhando nas brincadeiras. À noite quando voltei para casa custei a dormir pensando na vida boa que esperava Suzaninha e como eu também queria para mim.

No dia seguinte, bem cedinho, fui chamá-la para a escola e entrei pelo portão aberto do quintal. Ouvi um choro baixinho perto da churrasqueira e espiei de longe. Dona Aparecida metida num vestido florido, tinha os cabelos louros desalinhados e as bochechas rosadas. Estava encostada no muro enquanto um rapaz, abraçado a ela sussurrava na sua orelha e limpava suas lágrimas com as costas das mãos. Ao lado dos dois um cesto cheio de mudas de violetas emborcado no chão. Fiquei com medo que me reparassem e corri. Mas voltei e chamei por Suzaninha.

O rapaz pegou o cesto, disfarçou e começou a plantar as mudas no jardim. D. Aparecida fingiu varrer o quintal. Minha amiga veio com cara de sono ao meu encontro. No caminho, ela agitada falava das novidades que viriam com a mudança, enquanto eu ia quieta. Na esquina da escola, estranhando a minha mudeza, perguntou se eu estava chateada com a sua partida. Estava também, mas naquele momento era a angústia da descoberta da tristeza de D. Aparecida que me deixava muda. Cena mais ruim de se ver. Menti para Suzaninha e disse que era só chateação pela sua partida mesmo.

Aquela foi a última primavera que passei com Suzaninha. Depois vieram outros donos para a sua casa que cimentaram o jardim de Dona Aparecida e fizeram piscina. O plantador de violetas eu nunca mais vi. Mas os passarinhos ainda ficaram algum tempo por lá.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

A Vida por dois Vinténs

A operação de resgate dos trabalhadores que ficaram soterrados numa mina do Chile está chegando ao fim, felizmente com êxito. Foi comovente. Trinta e três vidas estavam a 700 metros de profundidade, e o cenário montado para recebê-las na superfície da terra foi, merecidamente, proporcional. A imprensa do mundo inteiro está lá. O presidente do Chile acompanhou, dia após dia, a operação de salvamento e está lá para receber os mineiros e parabenizar a todos: salvadores e salvados. O presidente da Bolívia também compareceu para receber o único representante do seu país naquele infausto evento. A engenhoca montada para a operação, que levou apenas (!) 68 dias para alcançar o seu objetivo, funcionou a contento, embora a roldana que guia o cabo de tração da cápsula possa causar arrepios em qualquer estudante de engenharia mecânica. Cantou-se o hino nacional à exaustão. Estão salvos! Glória a todos!

Agora eu pergunto: O que é que leva o ser humano a confinar o seu semelhante
a 700 metros de profundidade para extrair de lá alguns trocados ?

                                                                                                                 Luigi Spreafico

sábado, 9 de outubro de 2010

O Colaminho

Acordou cedo. Tinha coisas importantes a fazer. Deu uma volta pela cozinha, tomou café vagarosamente, pensativo, analisando os obstáculos que encontraria pela frente durante o dia que se desenhava complicado.
Procurou o colaminho. Não o achou no lugar onde o havia deixado. Voltou-se para a mulher:

-- Você viu o meu colaminho?
-- Não.
-- Como, não? Ele não está onde o deixei.
-- Você nunca sabe onde deixa as coisas.
-- Claro que sei. Você é que mexe nas minhas coisas e depois não coloca no lugar.
-- Eu não mexi em nada do que é seu. Você se esquece, e depois vem cobrar de mim.
-- Eu me lembro perfeitamente das coisas. E não aceito essas suas insinuações.
-- Que insinuações? Eu não falei nada. Você está ficando maluco. Onde já se viu       amarrar uma caneta no pé da mesa?
-- Você sabe perfeitamente por que eu amarrei a caneta. Não pára caneta em lugar nenhum desta casa. Uma vez encontrei oito canetas na tua bolsa.
-- Você anda remexendo na minha bolsa?
-- Eu só fui procurar uma caneta. Encontrei oito!
-- Não grite assim comigo! Você só sabe reclamar. Não sabe onde larga as coisas e põe a culpa em mim!
-- Agora quem está gritando é você! Assim não é possível. Eu não agüento mais. Alguma coisa tem que ser feita. Onde está o meu colaminho!? Você está arruinando a minha vida! Se você ao menos tivesse a sensibilidade de parar de ciscar nessa cozinha e me ajudasse a procurá-lo. Onde está o meu colaminho? Eu me mato pra fazer as coisas direito, ainda se fosse em meu benefício pessoal mas não, não, é tudo pra você, pra família, tudo, tudo, eu já não durmo mais direito, não consigo me concentrar, as coisas desaparecem, não se acha nada, nada, eu me esforço, não penso noutra coisa, você vai acabar com a minha vida!
-- Por causa de um colaminho? Francamente!

                                                                                                     Luigi


domingo, 26 de setembro de 2010

Lição de Inglês



A professora era miúda. Curta e magra. Sua voz era meiga e suave, delicada como o seu corpo. Sussurrava poemas de William Blake – “tiger, tiger, burning bright / in the forest of the night ...”  – como quem canta uma canção de ninar.

A professorinha preocupava-se com a minha pronúncia e com a minha saúde. Trabalhando no turno da noite, minha pele havia adquirido um tom metálico fosco, parecido com o da prata já coberta pela pátina do tempo. A fábrica Bangu era o meu segundo emprego, depois da escola. Eu entrava às dez da noite e saía às seis da manhã. No caminho de casa eu parava sempre no mesmo bar e “jantava” dois ovos fritos e uma cerveja. Eu seguia o conselho que me havia sido dado pela professorinha:

--“ Eat many eggs!” , dizia-me sempre, e repetia a frase acenando-me e gritando do portão de sua casa, quando, terminada a aula, eu me afastava. Em sinal de reconhecimento eu me virava e levantava as mãos para o céu. Não sei bem o que aquilo significava mas pelo sorriso que via em seu rostinho magro percebia que ela ficava contente.

No meu jantar das seis da manhã eu sentava sempre numa mesa da calçada. As pessoas que passavam balançavam a cabeça e podia-se ler o que pensavam:

“Pobre coitado, começando a uma hora destas, imagina como estará quando chegar de noite”.

Um dia ela me falou de Deus. Eu, que considerava Deus apenas um amigo de infância, interessei-me, e perguntei onde ficava a sua igreja.

-- We have no church. We pray in the streets.

Passei a venerar a professorinha que rezava nas ruas, sem imagens nem templos.

Na flor da juventude, foi graças aos seus conselhos que sobrevivi por mais de um ano àquele regime de trabalho noturno que subjuga o homem à mais cruel solidão. Não havia passeios. Não havia namoro. Não havia festas. Não havia cinema nem teatro. Não havia sono. Não havia despertar. Não havia nada.

-- “Eat many eggs!”

Só havia a professorinha, dois ovos fritos e uma cerveja casco escuro. Todos os dias.

Luigi





quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Dever de Casa: Escrever

“Escrever” continua atual. Depois que o Severino simulou um ataque de demência por achar que, devido ao que já se publicou e se continua publicando não sobrariam leitores para ele, aparece no Segundo Caderno do “O Globo”, uma coluna de Francisco Bosco com, exatamente, esse título: Escrever.

Logo depois do destempero do Severino, Mônica Noronha tratou desse tema com seriedade explicando como e por que escreve. Debatendo-se entre o prazer da escrita e as obrigações que lhe são impostas pela profissão que exerce, Mônica dá uma importância elevada à contraposição publicações/ leitores, resigna-se por não poder escrever tudo o que gostaria , e encerra o assunto: “Então, que venha o possível”. Decisão sensata.

Na sua coluna Francisco Bosco cita o filósofo Giorgio Agamben: "Escrevemos para nos tornarmos impessoais".  Bosco explica: “Segundo o filósofo, cada sujeito é formado por duas dimensões, uma pessoal, outra impessoal. A pessoal é o Eu, a consciência, a identidade; o que em nós é constituído, sabido, reconhecido. A parte impessoal é o que, “em nós supera e excede”, é o que nos revela “que nós somos mais e menos do que nós mesmos”, é uma “zona de não conhecimento” em nós mesmos”. Depois de estender-se numa longa e detalhada interpretação das palavras do filósofo, Bosco conclui: “Para mim, é por isso que se escreve, ou, ao menos, é por isso que escrevo: para transcender os limites tediosos neuróticos do meu ser”.

Nunca pensei que fosse tão complicado.

Severino Mandacaru, por exemplo, que só ficava neurótico quando faltava cerveja, escrevia a seu modo – não precisava de papel – , cantando na praça de Glória de Goitá:


Eu canto, eu faço verso
Eu canto até mi sguelá
Eu rimo no desafio
Acompanho no ganzá
Eu canto gloza e repente
E galope à beira mar ...


Moço distinto se chegue
Meu canto é pra si escutá
Mostre que tem coração
Ajude um pobre a cantá
Tire do bolso um trocado
E bote no meu borná ...

Severino tinha suas razões. A vida dura na caatinga não lhe permitia maiores elocuções.
Creio que chegou a hora de dizer por que escrevo. E vou ser sincero:

Escrevo para me exibir. Para receber aplausos e vaias. Escrevo no centro de um palco, como um ator. Curvo-me em agradecimentos quando me aplaudem. Cubro o rosto quando me vaiam.

Escrevo para ser lido. Fico alegre quando descubro que alguém me leu. Não são muitos: Um colega aqui, um amigo ali. Um primo, um cunhado, um sobrinho e um neto. E eu mesmo.

Escrevo porque gosto de ler. Como leitor, quero saber o que penso. Se não escrever, não posso ler-me. Leio como qualquer leitor, fora do palco. Quando gosto, rio muito e aplaudo. Quando não gosto, vaio e rasgo tudo.

Escrevo porque vivi. E vivi bem. Não sei inventar histórias. Escrevo o que vivo.

Escrevo ... porque gosto. E tenho papel e lápis.



Luigi Spreafico

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Hoje é o aniversário do Diretor !!!

Madrugada Insólita



Acordei. Eram quatro horas da manhã. Esfreguei os olhos com preguiça. Fiquei sentado na cama, de olhos fechados, e esperei até lembrar onde estava. Levantei-me, enfiei os pés nos chinelos que me acompanham há tantos anos e caminhei até a cozinha. Bebi um copo d’água. Fiz café. Sentei-me na cadeira dura enquanto aspirava o aroma suave do arábica. Fechei os olhos. Perdi a noção do tempo. Tenho que devolver um livro que me emprestaram, não posso esquecer. Preciso alisar o chão de terra onde ponho comida para os passarinhos. Está cheio de rachaduras, os grãos de alpiste afundam, e as pobres aves não conseguem alcançá-los. O bambu que cortei há meses já está seco. Tenho que prepará-lo antes que as chuvas comecem. Já é quase Outubro. Hoje vou fazer o primeiro corte na rúcula que plantei há um mês de uma semente que não poderia ter nascido. Sua validade venceu em Setembro de 2004. Mas nasceu, porque ignorei o seu prazo de validade. Eu também nasci, mas com prazo de validade não revelado. Vou fazer como fiz com a semente. Ignorar o prazo e plantar-me a cada dia. Hoje é 16 de Setembro. Oitenta anos atrás eu vi a luz pela primeira vez. Assim me disseram. 80. Um número formado por três zeros. Um grande e dois pequeninos.

Luigi

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Minha Usaflex Bege


"As pessoas se irritam com aqueles que adotam padrões de vida muito individuais; elas se sentem humilhadas, reduzidas a seres ordinários, com o tratamento extraordinário que eles dispensam a si mesmos." ( F. Nietzsche)



Me mudaram para outra sala, adorei o espaço, os móveis modernos e tinindo de novos. Até comprei dois pares de sapatos de saltos altos e uma a bolsa, que foi cara, para combinar com os dois pares de sapatos. Comecei a usar uns vestidos mais curtos para realçar as minhas pernas, que dizem serem muito bonitas. Até me animei a fazer escova no cabelo, dia sim, dia não. Ouvi um elogio bem quente de um colega que sempre me achou invisível.

Acontece que antes trabalhava sozinha num rabicho de sala, e com a mudança tive que dividir meu espaço com ela. Mal a conheço, tomara que nossa convivência dê certo. Gosto de pessoas mais descoladas e ela é muito certinha. Sua mesa é arrumada, com todas as canetas e lápis dispostos, cuidadosamente, dentro do porta-lápis. Os poucos papéis são lisinhos e sem marcas de manuseio, impecavelmente, dispostos num porta papéis. Um tremendo contraste com a bagunça da minha mesa. Isso me incomoda um pouco.

A primeira vez que a vi abrindo o seu laptop, reparei que está novinho em folha, apesar de ter o mesmo tempo que o meu. Quando ela começou a teclar, seus dedos, tipo delicados, mal tocaram nas teclas. Atendeu ao telefone, silenciosamente, e eu sequer ouvi se falava com um homem ou com uma mulher. Gente assim me dá nos nervos.

Ganhamos bombons do chefe, fiquei esgueirando o jeito entediante dela morder devagar, mastigar, calmamente, de boca fechada. Eu coloquei aquela delícia toda na boca de uma vez. Não vou agüentar conviver o dia inteiro com alguém que come assim.

Ela fala baixo, pronuncia as frases com clareza. Nunca dá uma gargalhada, apenas sorri. Claro que não tem a minha alegria esfuziante. Quando chega de manhã,me dá um bom dia cordial e senta-se na cadeira com uma postura invejável. Não relaxa. Esta sala está ficando cada vez mais apertada para nós duas.


Há alguns dias não faço escova nos cabelos e voltei a usar minha sandália usaflex bege . Estou vendo um jeito de sair desta sala. Me sinto enjaulada, com ela apontando, dia após dia, os meus excessos, como se fossem defeitos. Vou acabar me aborrecendo e lhe dizendo uns desaforos. Afinal quem ela pensa que é com esse ar superior ?

Agora mesmo, só para me irritar, guardou os óculos, envoltos numa flanela, dentro de um porta óculos acolchoado.

domingo, 5 de setembro de 2010

As Feridas da Infância II - A Patriotada



“A Pátria é a família amplificada” disse Ruy Barbosa.
“O sentimento que divide, inimiza, retalia, detrai, amaldiçoa, persegue, não será jamais o da pátria. A Pátria é a família amplificada.”

A Escola Técnica de Indústria Química e Têxtil foi a primeira escola criada no Brasil para o ensino da tecnologia têxtil. Destinava-se a suprir pessoal técnico para o setor substituindo técnicos e engenheiros trazidos do exterior. A Confederação Nacional da Indústria dera muita importância a esse problema e escolhera o Senai para implementar o projeto. Num prédio enorme instalou oficinas e laboratórios com os equipamentos mais modernos disponíveis na época. Instalou também um parque esportivo, cozinhas, lavanderia e um internato, posto que os alunos vinham de todos os Estados do Brasil e muitos do exterior. A direção foi entregue ao Prof. Mario Souto Lyra, engenheiro que se havia especializado no Instituo Têxtil da Universidade da Carolina do Norte.
O regime era severo: oito horas de aula por dia e mais uma hora de estudo orientado, obrigatório, à noite. Aos sábados, atividades culturais.

Na primeira semana de aulas o Diretor reuniu os alunos para um anúncio importante: o aluno que se classificasse em primeiro lugar durante todo o curso seria contemplado com uma bolsa de estudos. Faria o “Master in Science”, de quatro anos, na Carolina do Norte. Eu vinha de Pernambuco, para onde tinha ido no começo da adolescência e havia completado, com muito sacrifício, o curso secundário. Continuar os estudos depois do curso técnico só seria possível, para mim, se eu conquistasse aquela bolsa. Classifiquei-me em primeiro lugar.

Pra chamar a atenção sobre a Escola, a Confederação Nacional da Indústria ofereceu um jantar ao empresariado têxtil, onde foi anunciada a concessão da bolsa. Entre as autoridades presentes estavam Euvaldo Lodi, presidente da Confederação, e D. Jaime Câmara, Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro. Presente estava também o Professor Ivo A. Cauduro Piccoli, que havia sido nosso professor de física durante todo o curso, muito eficiente e simpático, que se tornara grande amigo dos alunos. Ele chefiava o departamento da Confederação que administrava as bolsas de estudo.

Terminado o jantar, parabéns pra cá, parabéns pra lá, salamaleques pra todo o lado, Piccoli me chama a um lado e diz:
-- Venha amanhã ao meu escritório e traga seus documentos. Vamos tratar do seu embarque.
Fui pontual. Depois de um longo prólogo no qual discorreu sobre o curso nos Estados Unidos, o professor pergunta:
-- Trouxe os documentos?
Entrego-lhe os documentos. Ele olha a carteira de identidade e solta um urro:
-- Italiano? Você é italiano?
-- Sou, sim. Todo o mundo sabe disso lá na escola.
-- Não é possível! Todo mundo chama você de “Pernambuco”, como é que você pode ser italiano?
-- Pois sou. Estou pedindo a naturalização, mas a papelada ...
-- Eu não posso mandar um italiano representar o Brasil numa escola americana.
-- Mas, me disseram que a bolsa era um premio para o primeiro colocado e não ...
-- Não é possível, não é possível!

Meu mundo desabava. Eu não sentia o chão debaixo dos pés. A vista se turvou.
Vi a cara do meu pai, a quem eu havia prometido continuar os estudos por minha conta. O professor continuava falando mas eu não ouvia mais nada. De cabeça baixa afastei-me, de costas, até encontrar a porta. Eu tinha vinte anos.
Completei meus estudos aos quarenta e sete, casado e com dois filhos grandes.

“ A Pátria é a família amplificada” disse Ruy Barbosa.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Cena de Rua


Claudia Bontempo

"Da série:

Esta semana embarquei
meu filho para
o mundo, mas ele ficará ao meu lado em todos os meus dias, no meu
pensamento
"



Era aqui tenho certeza que era aqui. No entanto, este senhor que me olha impaciente, me diz que não tem. Fico confusa. Já dei a volta por toda a vitrine para ver se não mudaram de lugar, talvez ele seja novo e não saiba onde estão. .

-Onde estão as sandalinhas dos meninos ? Pergunto novamente.

O homem se zanga e diz que não sabe de sandalinhas de meninos nenhuma, e vai atender outra pessoa. Mas era aqui nesta loja que vendiam as sandalinhas que eu comprava para os meus meninos.

Tinha uma vitrine só de pequenas alpercatas de couro. Eu chegava com eles tão pequenos ! Como eles eram pequenos, meu deus ! Eu vivia afobada, sem tempo de abraçá-los e beijá-los como eu queria. Vínhamos de longe, pois gostava de ver os pezinhos calçados com elas.

Resolvo sentar-me no chão mesmo. Estou tão cansada de procurar pelos meninos. As pessoas passam na rua e me olham como se tivessem pena de mim, não percebem que tenho um objetivo claro e preciso. Eu tenho que achar a vitrine. Eu tenho que achar meus meninos.

Eu sei que viraram homens , mas eu tenho que achar os meninos que ainda vivem dentro de mim.

Gostava tanto de ver seus pezinhos calçados com as sandalinhas.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Nos Toscos Fios - O Remorso


Claudia Bontempo lia, compenetrada e solene, sua crônica semanal. Eu ouvia, atento, como os demais colegas, preparado para mais um dos seus textos comoventes como “Segredo Bem Guardado” e tantos outros que tocam fundo na alma da gente. Sua voz se fazia dramática quando sibilou:
-- ... nos toscos fios ...
A sonoridade da frase levou-me às gargalhadas. Não sei explicar por que. A colega ainda esboçou uma explicação mas eu não conseguia parar de rir.
Indignada, Claudia interrompeu a leitura, jogou os papeis sobre a mesa e trancou-se num mutismo impenetrável. Por mais que eu implorasse recusou-se a continuar a leitura. Nunca mais voltou ao assunto e eu fiquei sem saber do que se tratava nem que fios eram aqueles. Fiquei com sentimento de culpa que me conduziu a um pensamento atroz. Eu podia ter frustrado, naquele momento, a criação de mais uma obra prima da Claudia Bontempo.
Meio sem jeito, e com a intenção de penitenciar-me, resolvi fazer graça escrevendo um poeminha bobo que chamei de “Nos Toscos Fios”. Não deu certo e eu continuei carpindo a minha culpa.
Como a dor continuou insuportável, fui buscar nos escaninhos da memória alguma coisa que me ligasse a fios e com eles teci esta crônica que a ela dedico na esperança de obter a sua clemência. E antecipo um apelo: Releve meus erros de português. Sem eles eu não conseguiria escrever nada.

URDUME, TRAMA E TRAMÓIAS

Precisávamos de fios. Muitos fios. Fios de lã. Fios crus de pura lã penteada. Com eles produziríamos o tecido que nos iria projetar na história da industria têxtil brasileira. Éramos jovens e sonhadores. Estávamos no último ano do curso técnico da industria têxtil, o primeiro a ser criado no Brasil e seriamos a primeira turma a ser formada. Discutia-se a festa de formatura, que seria realizada nos salões do Fluminense, àquela época um clube aristocrático. Os concluintes filhos de empresários queriam que o traje fosse smoking. Os perebentos de Sergipe, Alagoas e Pernambuco, entre os quais o abaixo assinado, se opunham.

Reuni a turma e fiz uma proposta: Vamos tecer o nosso próprio pano e mandamos fazer o terno. Temos o tear mais moderno do mundo para tecidos de lã. Faremos uma gabardine perfeita e a tingiremos de azul marinho, a cor da moda de todos os executivos. Só precisamos de fios. Há dois lanifícios no Estado. Tentarei sensibilizar um empresário e talvez consiga que ele patrocine a primeira turma de técnicos formada no Brasil. Afinal, é do interesse do setor. Talvez os fios sejam doados. Proposta aprovada.

Marquei entrevista com um gerente do lanifício que deu uma risadinha quando falei em patrocínio mas concordou em vender os fios. Discutimos o negócio: especificações, quantidade, preço, etc. Negócio fechado. O gerente me encaminhou a um magarefe para acertar a entrega.
Os fios que se destinam às tecelagens são acondicionados em bobinas cônicas que têm como suporte um tubo de papelão rígido. O formato em forma de tronco de cone visa a facilitar o desenrolamento do fio nas operações posteriores. O peso da bobina cheia varia conforme o fio e naquele caso era de 800 gramas. O tubete de papelão pesava 40 gramas. Quando fui retirar os fios, o epiltrafa entregou-me bobinas parcialmente usadas que continham, se tanto, 200 gramas. A fraude era dupla: 1. Tratava-se de bobinas descartadas porque arrebentavam demais durante o processamento; 2. A desproporção entre o peso do tubete e o do fio era evidente; nem precisava fazer cálculos para ver que estávamos comprando papelão a preço de fio. Quanto às rupturas dos fios eu nada podia fazer já que se tratava de uma hipótese, apesar das evidências. Mas, quanto ao peso dos fios, pedi que fosse descontado o peso dos tubetes pois eles representavam 20 por cento
do peso do fio contra 5 por cento no caso das bobinas cheias.

A discussão foi longa e inútil. Era aquilo ou nada. Saí com os meus fios, furioso e humilhado. O resultado não foi outro. Os fios partiam à toda hora. O trabalho era penoso. Revezamo-nos dia e noite no tear. Quando alcançamos a metragem mínima necessária ainda sobravam muitas bobinas, com uma camada ínfima de fio. Juntei tudo e parti para a fábrica a fim de devolve-las. Levei comigo quatro colegas escolhidos por peso e tamanho pois sabia que dificilmente seriam aceitas. Fui atendido pelo mesmo sabujo. Não foi preciso discutir muito para que aceitasse a devolução. Só que:
-- Está bem, vou pesar o fio, só que tenho que descontar os tubetes de papelão.
Os quatro colegas circundaram o safado e não foi preciso dizer nada para fazê-lo desistir da idéia. E, aí sim, vendi o meu papelão a preço de fio.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Caros Colegas

Tenho me esforçado para comparecer com assiduidade aos sermões semanais. No entanto vejo que alguns colegas hibernaram, mesmo morando em plena praia. Ou a Paçoca escreve alguma coisa ou entro em greve de verbo.
Luigi

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Haikai (em japonês: 俳句, Haiku ou Haicai?) é uma forma poética de origem japonesa, que valoriza a concisão e a objetividade. Os poemas têm três linhas, contendo na primeira e na última cinco caracteres japoneses (totalizando sempre cinco sílabas), e sete caracteres na segunda linha (sete sílabas).
[1].

Segundo Mr.Hoigays (1988), o primeiro autor brasileiro de Haicai foi Afrânio Peixoto, em 1919, através de seu livro Trovas Populares Brasileiras, onde prefaciou suas impressões a respeito do poema japonês:

“Os japoneses possuem uma forma elementar de arte, mais simples ainda que a nossa trova popular: é o haikai, palavra que nós ocidentais não sabemos traduzir senão com ênfase, é o epigrama lírico. São tercetos breves, versos de cinco, sete e cinco pés, ao todo dezessete sílabas. Nesses moldes vazam, entretanto, emoções, imagens, comparações, sugestões, suspiros, desejos, sonhos... de encanto intraduzível”[3].

Em japonês, haiku são tradicionalmente impressos em uma única linha vertical, enquanto haiku em Língua Portuguesa geralmente aparecem em três linhas, em paralelo[2]. Muitas vezes, há uma pintura a acompanhar o haicai (ela é chamada de haiga). "Haijin" é o nome que se dá aos escritores desse tipo de poema, e principal haijin (ou haicaísta), dentre os muitos que destacaram-se nessa arte, foi Matsuô Bashô (1644-1694), que se dedicou a fazer do haikai uma prática espiritual.

Com a ambientação e a difusão do haiku em língua portuguesa, algumas correntes de opinião [3] sobre este se formaram:

A corrente dos defensores do conteúdo do haiku;
A corrente dos que atribuem importância à forma;
A corrente dos admiradores da importância do kigo.

Os defensores do conteúdo do haiku são aqueles que consideram algumas características do poema peculiares, como a concisão, a condensação, a intuição e a emoção, que estão ligadas ao zen-budismo. Oldegar Vieira é um haicaísta que aderiu a essa corrente.

Os que consideram a forma (teikei) a mais importante seguem a regra das 17 sílabas poéticas (5-7-5). Guilherme de Almeida não só aderiu a essa corrente como criou uma forma peculiar de compor os seus poemas chamados de haikais “guilherminos”. Abaixo, a explicação da forma conforme o gráfico que o próprio Guilherme elaborou:

_______________ X
___ O ______________ O
_______________ X


Além de rimar o primeiro verso com o terceiro e a segunda sílaba com a sétima do segundo verso, Guilherme dava título aos seus haikais. Exemplo (GOGA, 1988, p. 49):

Histórias de algumas vidas

Noite. Um silvo no ar,
Ninguém na estação. E o trem
passa sem parar.

Os admiradores da importância do kigo respeitam em seus haikais o termo ou palavra que indique a estação do ano. Jorge Fonseca Júnior é um deles. Apesar de existirem essas distinções retratadas aqui como correntes, nomes como os de Afrânio Peixoto, Millôr Fernandes, Guilherme de Almeida, Waldomiro Siqueira Júnior, Jorge Fonseca Júnior, Wenceslau de Moraes, Oldegar Vieira, Abel Pereira e Fanny Luíza Dupré são importantes na história do haikai no Brasil

Alguns exemplos:


pétala caiu
se quis colorir o chão
fez bem, conseguiu.
Carlos Antonholi



no despenhadeiro
a sombra da pedra
cai primeiro
Carlos Seabra



outro outono
no chão entre as folhas
sonhos do verão
Ricardo Silvestrin




fim do dia
porta aberta
o sapo espia
Alice Ruiz



pétalas de rosa
a contar-lhe uma história --
sonho de mulher
Chris Herrmann



Ah, mosca de inverno
- questão de dia ou de hora
seu último instante?
Masuda Goga



Florada de ipês!
Meu pai também se alegrava
Em tarde como esta...
Teruko Oda



Dia de Finados
Formigas carregam
Pétalas que caem.
Jorge Lescano



início de outono --
no caminho vão sumindo
as vozes dos amigos.



vento de inverno:
o gato de olho vazado
procura seu dono
Edson Kenji Iura


Para quem viaja ao encontro do sol,
é sempre madrugada
Helena Kolody


Pintou estrelas no muro
e teve o céu ao
alcance das mãos
Helena Kolody


O ipê distraído
pinta de amarelo
a grama do parque
Jorge Fernando dos Santos


Sob o sol se pondo
como alfinete no lago
descansa a garça
Marcelo Santos Silverio

Referências:

1.↑ Lanoue, David G. Issa, Cup-of-tea Poems: Selected Haiku of Kobayashi Issa, Asian Humanities Press, 1991, ISBN 0-89581-874-4 p.8
2.↑ van den Heuvel, Cor. The Haiku Anthology, 2nd edition, Simon & Schuster, 1986, ISBN 0-671-62837-2 p.11
3.↑ a b c GOGA, H. Masuda. O haicai no Brasil. São Paulo: Aliança Cultural Brasil-Japão, 1988.

Links:

Caqui(em português)
Caixa de Hai-Kai(em português)
Jornal Nippo-Brasil História do Haicai(em português)
Blog Hai Kais(em português)

domingo, 22 de agosto de 2010

Haicai para uso interno


Aprendi com Lena Jesus Ponte, diáfana poetisa do haicai, a apreciar essa forma de poesia que rejeita a individualidade, despe-se da moralidade e da intelectualidade e glorifica a solidão. Lena é um haicai na sua forma física, transparente, emanando uma luz que envolve as pessoas ao seu redor e as transforma em poesia.

Nas frequentes viagens ao Japão eu tentara penetrar naqueles versos sintéticos, lidos em tradução para o inglês, sem conseguir captar-lhes a alma. Logo entendi, em discussões com japoneses, que não era só a deterioração causada pela tradução que me impedia de captar-lhe o verdadeiro sentido poético mas também porque, como explica Cecília Meireles, “na sua concisão eles evocam, para os japoneses, sugestões que o Ocidente em geral não consegue captar”. Nas aulas de Lena Pontes consegui penetrar um pouco mais no mundo mágico do haicai.
Quando, em uma das aulas, Lena mencionou o nome de Oldegar Vieira entre os poetas brasileiros precursores do haicai, dei um pulo na cadeira. Oldegar Vieira havia sido meu professor de português na Escola Técnica em 1949. Oldegar acabava de publicar seu primeiro livro “Folhas de Chá” e, vez por outra recitava em classe seus haicais. Lembro-me bem de alguns, até hoje:

Noite de Natal
Neve na vitrine
Lágrimas nos olhos
Do menino pobre

Alvorada
Pouco a pouco vai
O canto claro do galos
Clareando o dia

Pôr de Sol
Na tela do firmamento
O sol, pintor desastrado,
Derramou suas tintas

Pouca importância demos ao livro do Oldegar. Éramos jovens, imaturos e irreverentes. Certo dia um colega mais gaiato escreveu no quadro negro:
“Próximo lançamento do Professor Oldegar Vieira: Pó de Café”. O professor leu a frase e, longe de ofender-se, dando uma risada disse:
-- Vocês estão convidados. Espero que comprem o livro.

A neblina da serra induz à reflexão e a reflexão nos torna poetas. Pena que a neblina não nos dá a habilidade para escrever. De qualquer forma aqui vão meus destemperos:

No ouvido das folhas
Depositei meu segredo
Morrerei sem medo

Sobre um galho seco
Um passarinho canta
Que a vida se foi

Pensa e conclui
O cérebro da floresta:
O homem não presta

Senilidade
Apenas senilidade
Senilidade

Um dia serás planta
Carregada de sonhos
Que um dia cairão

Tristeza de inverno
Senta-te aqui ao meu lado
Finge que é verão

Luigi Spreafico

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Francisco! Ôooh, Francisco!

Francisco seguiu o pai. Sem maiores estudos tornou-se um grande mecânico ferramenteiro. Partindo do nada instalou-se em Santo Amaro, São Paulo. Construiu uma oficina onde produzia peças para a indústria automotiva. No tempo vago projetava componentes para outros setores como eletrodomésticos, caldeiraria e implementos agrícolas. Teve dois filhos: um casal.
O filho, tendo estudado mecânica de precisão, o acompanhou na profissão e com a aposentadoria do pai transformou a oficina em uma fábrica de máquinas e acessórios para estamparia de silk-screen.

Francisco, aposentado, conseguiu como tantos outros românticos sentimentais o “seu sítio, seu paraízo”. Localizava-se próximo a Ibiúna, a mil e quinhentos metros de altitude, o que me provocava uma certa inveja pois ali era possível dormir acalentado pelo suave perfume da macela.
Numa viagem ao sítio ele foi flagrado pela polícia federal dirigindo sem óculos. Embora a carteira de habilitação o obrigasse a isso, como o grau era pequeno, Francisco sentia-se mais confortável dirigindo sem os óculos e os mantinha ao alcance da mão, no banco ao lado. Desceu do carro com os óculos na mão.

-- O senhor está dirigindo sem óculos.
-- Desculpe, mas eu estou dirigindo com os óculos.
-- Mas o senhor está com eles na mão.
-- Certo. Acabei de tirá-los. È que minha mãe me ensinou que sempre se deve tirar os óculos quando se fala com uma autoridade.

Entre as coisas importantes a que Francisco se dedicou, antes que o sítio se transformasse em “seu sítio seu prejuízo”, estava a apicultura. E, para fazê-la bem não poderia fazê-la que não fosse migratória, você sabe, é aquela em que se deslocam as colméias para os lugares onde a florada é mais abundante. Nessa época Francisco já passava dos setenta anos de idade e começava a desenvolver aquelas paranóias que sinalizam a senilidade: discussões freqüentes por motivos banais com a mulher, obstinação na defesa dos seus pontos de vista e... diga você o resto. Entre essa paranóias estava a de que a mulher sempre o contrariava, sem mais nem menos, só por prazer. Elizabeth, sua esposa, era austríaca e uma santa mulher, um modelo de tranqüilidade. Chegada ao Brasil já adulta falava com um sotaque divertido e era um prazer ouvi-la.

Numa visita que lhe fiz nessa época sentamos para tomar chá na enorme copa
da enorme casa que ele mesmo havia desenhado e onde era difícil distinguir as fronteiras entre a casa e a oficina. Elizabeth estava na cozinha e podia-se vê-la debruçada sobre o fogão.

-- Luis, quero que você prove o mel que acabei de tirar. Deu uma produção enorme.
Provei o mel e comentei:
-- Este mel é bom, Francisco, mas tem gosto de cana.
-- Cana? Que cana? Como, cana?
-- Cana de açúcar. Você colocou as colméias perto de algum canavial?
Francisco provou o mel.
-- Você tem razão, tem gosto de melado. Como é possível? Ah, você quer ver uma coisa, você quer ver, quer ver? Vou dizer isso pra Bete. Ela vai dizer que não é nada disso, que eu estou maluco, só para me contrariar. Quer ver, quer ver?

-- Bete! Oh, Bé!
-- O que é Franzisco?
-- Este mel tem gosto de cana, você sabia?
-- Klaro, Franzisco. Só temm cana nesse lugar. Focê kerria que tinha gosto te frampoesa?

Perto de completar noventa anos, Francisco está acamado. Vou visitá-lo, em Santo Amaro, nem sempre com a freqüência que ele merece. Debilitado fisicamente, está sempre implorando por piedade. È compreensível. Sente-se indefeso e impotente.
Outro dia telefonei-lhe para saber como andava a saúde. Respondeu-me num tom que parecia vir do além:
-- Oh, oh... estou aqui morrendo, não posso me mover, oh... estou morrendo ...
-- É Francisco, todos nós vamos morrer um dia.
-- ... não posso comer mais nada ... só soppinha ... pappinha ... osso buco ...
-- Osso buco? Gritei eu. Você esta comendo osso buco? Isso é pesado até pra mim e você vem me dizer...
Flagrado, ele se recompõe do deslize e dispara com toda a vitalidade:
-- É, você sabe né, Luis pra fazer o osso buco direito tem que aprender. O osso buco se acompanha com risotto. É preciso tirar o tutano do osso e colocar no risotto que assim fica mais cremoso ...

Não o interrompi. Ele continuou descrevendo pratos que comíamos quando crianças. Depois começou a recitar poesias. Dante, Carducci, D’Annunzio, poesias que ele aprendera na escola primária, ao pé das montanhas, junto ao Lago de Iseo, até os 12 anos de idade, quando emigrou. Durante meia hora ele recitou poesias sem parar. E durante meia hora eu chorei. Chorei por ele e por suas lembranças. Chorei pela professora que lhe transmitira aqueles versos sem imaginar que ele os recitaria aos noventa anos, depois de atravessar um oceano. E chorei por sua escola e pelas coisas que se ensinavam naquela época.
Luigi

domingo, 8 de agosto de 2010

ESCREVER


-- Vou parar de escrever.
-- Por que?
-- Estou enlouquecendo.
-- Mas você não precisa parar de escrever só porque está ficando louco. Você não lê jornal? Não viu como tem louco escrevendo? Preste atenção ao que dizem certos políticos. E os economistas, desvairados, quando analisam as crises mundiais, os superávits primários, a distribuição perversa da renda, a deterioração das relações de troca, o corporativismo nas relações intersexuais dos povos nômades do baixo Cáucaso e sua influência na taxa de formação do capital, etc.,
Todos doidos! Eles conseguem comprovar duas teses diametralmente opostas usando o mesmo argumento. E os nossos legisladores, baseados nessas informações, para nos proteger, danam-se a tacar impostos e aumentar juros. Você, pelo menos, não prejudica ninguém. Escreva loucuras. Ninguém notará.
-- Mas essa é justamente a minha preocupação. Quem vai ler? Tirando meia dúzia de amigos ...
-- Não se preocupe com isso. Sempre haverá alguém mais descuidado disposto a ler o que você escreve.
-- Acho que você não entendeu. Não duvido que pessoas abnegadas se disponham a ler o que escrevo. O problema é fazer com que o livro chegue a elas. Não há pessoas suficientes para todos os livros que são publicados. Eu lhe garanto: tem mais livro do que gente!
-- Como assim, tem mais livro do que gente?
-- Você já reparou quantas livrarias existem espalhadas pelo mundo? Comece pelo Rio de Janeiro. Quantas? E Buenos Aires, aqui visinho, que tem três vezes mais do que o Rio? Você conhece as livrarias de Nova York? São gigantescas!
E Paris? E Londres, Frankfurt, Madri, Milão? Tókio tem uma livraria que tem sete andares com a área de um quarteirão! Não, não, isso dá pra enlouquecer!
São livros e mais livros que vão se acumulando desde Gutemberg, nas livrarias, nos armazéns, nas bibliotecas, nos arquivos, nos mosteiros, nos museus e até na minha casa. Não há gente para tanto livro. Só de pensar nisso eu enlouqueço.
-- Tenha calma. Acho que ainda há uma possibilidade de interromper esse seu processo de decomposição cerebral. Em primeiro lugar você está se precipitando. Se você não tem dados estatísticos confiáveis você não pode concluir que não há leitores suficientes. E aí a coisa se complica porque você teria que fazer um corte no tempo, calcular o número de livros em estoque nas livrarias nessa data, incluir as bibliotecas públicas, as particulares, os arquivos e sei lá mais o que, e ainda assim teria que fazer uma abstração deixando fora todo o material publicado em forma de jornal, revistas, boletins e sem falar em e-books, blogs e tudo o que circula no espaço sideral ...
-- Pois é. Essa é a minha intenção. E eu comecei dando um passo bem modesto, analisando um microcosmo que me permitisse montar um modelo a ser aplicado no resto do mundo.
-- De que maneira?
-- Pelo Rio de Janeiro. Com uma só livraria.
-- Como?
-- Você conhece a Leonardo Da Vinci? Sabe quantos livros tem lá dentro?
-- Não, por que? Você sabe?
-- Eu contei.
-- Impossível, você está maluco. Ninguém conseguiria fazer isso. Você perguntou pra Dona Giovanna?
-- Não. Não me atrevi, ela poderia desconfiar. Mas eu calculei. São 86.400 livros, com pequena margem de erro.
-- Nem vou lhe perguntar como você conseguiu fazer isso.
-- Veja bem, vou simplificar: a livraria tem 5 salas com estantes que vão até o teto. Cada estante é dividida em compartimentos, todos iguais, graças ao bom senso do marceneiro. Achar o total de compartimentos foi fácil. Contei o numero de livros que existe em cada compartimento e chequei, por amostragem, com alguns outros, pois nem todos os livros têm a mesma espessura. Assim cheguei a um valor médio representativo, com boa margem de segurança, de todo o conjunto. Os compartimentos que armazenam dicionários e livros de arte, que são notadamente mais grossos, foram tratados em separado e receberam um coeficiente de correção. No piso da loja também há livros, distribuídos em gôndolas, cuja quantidade pode ser facilmente calculada tomando-se o número de livros por metro quadrado. O meu passo é bastante regular e com ele posso medir qualquer distancia com erro menor do que dois por cento. Determinada a área de cada sala tem-se o total de livros, com o cuidado, naturalmente, de descontar o espaço ocupado pelas vias de acesso, escadas, mesas e cadeiras da administração, coletores de lixo, e onde ...
-- Pára, pára! Vou lhe dar o telefone de um médico.
-- Que médico?
-- È o psiquiatra que me curou quando eu parei de escrever. Não deixe de procurá-lo assim que você acabar essa cerveja.
Severino Mandacaru

terça-feira, 3 de agosto de 2010

As feridas da infância - I

UM BUQUÊ PARA MINHA MÃE

As feridas emocionais que sofremos na infância e na adolescência deixam marcas indeléveis. Sei que de nada serve arrastá-las pelo resto da vida. Nem mesmo servem de exemplo para coisa alguma. Atravessei toda a minha vida profissional sem dar-lhes a menor importância, totalmente esquecidas. Mas não sei por que agora voltam-me à memória fazendo-me sofrer, numa espécie de autoflagelação. Talvez pudesse dizer que servem de alerta aos jovens para que se acautelem contra falsos protetores. E aí me perguntariam: e como posso fazer isso?

Quando tinha oito anos a minha casa ficava exatamente no pico do morro da Vila Maria. De um lado, a partir do limite do meu quintal, o chão desaparecia e se podia contemplar a várzea do rio Tiete e o maciço dos edifícios no centro da cidade. Do lado oposto, ruas estreitas e vielas serpenteavam pela encosta até a base da colina onde começava o brejo. O brejo era um pântano que abrigava um pequeno lago de solo arenoso e firme, onde se podia andar a vau. Em certos dias do ano, devia ser no outono, uma neblina pesada caia sobre o lago criando uma atmosfera de mistério onde me parecia ver duendes fazendo troça.

Eu escapulia de casa, muitas vezes sozinho, e corria até lá em busca de aventuras: brincar com uma rã, perseguir um lambari, comer um araçá ou colher alguns “botões” com os quais minha mãe decorava a mesa de refeições que ficava na cozinha de terra batida. Os “botões” eram uma espécie de junco, uma simples haste longa e rígida que terminava com um botão, uma inflorescência compacta, de superfície lisa e aveludada e diâmetro não maior do que o dedo médio. De cor, eram brancos. Com os tocos de giz colorido que recolhíamos no quadro negro da escola pintávamos os juncos formando, assim, um buquê de flores. Esse era o ornamento mais comuns em nossas casas.

Certa manhã, vendo que a mesa da cozinha estava desprovida de colorido, parti para o brejo. Não havia ninguém. Eu já havia recolhido um bom feixe de juncos quando apareceu um rapaz enorme, já homem feito.

-- Olá! O que é que você está fazendo?
Expliquei-lhe o que fazia, espantado por ver um homem daquele tamanho que não sabia pintar juncos.

-- Eu também vou catar.

Tirou os sapatos, arregaçou as calças e atirou-se à água. Voltou com meia dúzia de hastes e depositou-as ao lado das minhas. Repetiu a operação com mais três ou quatro hastes e disse:

-- Vamos colocar tudo junto. Depois a gente divide ao meio.

Eu percebi a trapaça mas não podia fazer nada. Continuei empilhando juncos. O meninão ficou rodando de um lado para outro assobiando, apontando para os passarinhos, jogando pedrinhas no lago. Quando o feixe já estava bem grande calçou os sapatos, sobraçou o feixe, e foi-se embora assobiando. Não disse tchau.
Fiquei sentado, a cabeça escondida entre os joelhos, tentando esconder as lágrimas de mim mesmo. Eu não entendia. E até hoje não entendo.

Luigi