sexta-feira, 8 de janeiro de 2010



O Biscoito de Natal

Gosto de ouvir suas histórias já que ela consegue perceber o inusitado do quotidiano, e antes do fato acontecer, já tem a pré biografia dele pronta na imaginação. Me intriga como ela preenche, com fantasia , as brechas deixadas pela aridez do relato puro e simples e, em instantes, cria uma grande história..

As vezes, estamos andando a esmo pelas ruas, de repente, ela se cala abduzida por um instantâneo de acontecimento. Enquanto eu olho em volta e só vejo a mais pura realidade a desenrolar-se em ritmo enfadonho, sei que algo despertou-lhe uma curiosidade abissal e o seu íntimo trabalha para descobrir-lhe os vestígios do que a antecedeu, para ali estar e o desfecho que terá ou não dali em diante. Se houver, ela ainda assim acrescentará algo de novo, se não houver, tanto faz, ela o inventará .

Um dia voltávamos da nossa caminhada matinal, quando passamos debaixo de uma janela em que se ouvia o som de um piano. Ela, com seu ar abduzido, falou-me com uma certeza perturbadora. .

- Que bonito esse cara solitário tocando piano de manhãzinha !

Olhei-a incrédulo e perguntei-lhe como tirara tal conclusão do quase nada .
Ela, simplesmente, falou.

- Imaginei.

Por isso, quando no dia 1° de janeiro, me falou animada.

- Quem sou eu para plagiar Proust com as suas encantadoras madeleines, mas tive uma experiência com uns biscoitos que me presentearam no Natal, que vou te contar. Coisa de louco !

Sentei-me confortável na minha poltrona preferida, me preparando para o melhor, e ela começou .
- Lá em casa, quando eu era criança, os biscoitos eram raros, e quando minha vó os comprava, dividia entre nós três – eu e minhas irmãs. Íamos então para a frente da TV, com as mãos lotadas e meladas, a procura de algum programa interessante para assistirmos. Aquilo era o evento da semana, e quem sabe do mês, um momento de grande satisfação, único!.

Pensou um pouco e continuou.

- Eram biscoitos baratos, daqueles que se comprava nas mercearias, e ficavam expostos em latas pintadas com a marca do fabricante. Tinham um gosto forte de farinha e açúcar, devido ao glacê ,duro e granulado, que arranhava a língua e o céu da boca, gostosamente.

Tentei buscar esses biscoitos e as mercearias no fundo da minha memória, já que temos a mesma idade, mas só consegui lembrar-me dos já empacotados e de supermercados, achei que poderia ser uma de suas invenções. Mas estava interessante e segui dando trela para ela, que continuou.



- Pois bem, quando dei a primeira mordida no biscoito que ganhei no Natal, sabe que corri imediatamente para a frente da TV de LCD e comecei a esfregar a língua no granulado do açúcar ? Mas foi só na segunda mordida, que eu percebi a semelhança do gosto do biscoito de Natal com os da minha infância , e enquanto eu o saboreava o passado me levou pela mão. Voltei a soltar pipa com meu amigo Francisquinho, a rodar bambolê com minha amiga Marguinha e a assistir a série Perdidos no Espaço com minhas irmãs, sentada no sofá-cama de meu avô .

-Cheguei a sentir o cheiro de alho do feijão da minha avó, a angústia de não ter minha mãe do meu lado quando precisava, e até o cheiro forte de álcool do hálito do meu pai . E quanto mais eu comia o biscoito, mais a minha infância corria ao meu encontro, e eu presa ali, achando que me encantara.

Olhou um pouco para lugar nenhum, apertou e puxou com os dedos o lábio inferior.

- O biscoito era grande, não acabava !

Como, as vezes, acho-a um pouco dramática demais, resolvi fazer uma piadinha para relaxar.

- Nossa, dessa vez você exagerou! Isso tudo, com um simples biscoitinho....

Então, meio sem graça, como se saísse de um transe, ela falou.

- Não foi um biscoitinho. Foi uma chave que abriu uma porta que há muito tempo eu tinha fechado.

E não quis mais contar a sua “ à La recherche Du temps perdus” tupiniquim , apesar da minha insistência para que continuasse. Passou o resto do dia quieta, com certeza inventando outra de suas histórias. Eu nunca vou entender Ela.


Claudia Bontempo



2 comentários:

  1. “Gosto de ler suas histórias porque ela consegue escrever, na pele de outra, o que ela mesma é. E assim vai desenvolvendo sua narrativa, seduzindo o leitor com suas belas imagens”

    “Gosto quando ela, andando a esmo pelas ruas, consegue preencher o vácuo que se forma na realidade enfadonha com lampejos da sua imaginação fazendo vibrar o leitor."

    Gosto quando ela transforma um biscoito num livro de memórias. Quem não teve um biscoito na infância? Ou um brigadeiro? Ou uma broa de milho? Um croquete na Central do Brasil? O primeiro perfume na adolescência? Uma taça de vinho com o seu amor?

    Cláudia escreve. Cláudia vive. Cláudia nos faz viver.

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  2. Claúdia, já tinha escrito um comentário para este belo texto. Cada vez gosto mais. Você disse que esconde os seus textos e que morre de vergonha de mostrá-los em casa. Que pena que os seus queridos não possam ler coisas tão sensíveis e bem escritas. Um beijo da Paçoca que ficou roxa de inveja dos comentários do nosso querido Luigi. Quero dizer: os comentários estão a altura do texto, a palavara inveja foi só para enfatizar!

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